Friday, September 29, 2006

Diário de Trasnbordo - Parte VI: Chiles, Chiles


- Dolores, porque todas as comidas aqui são tão apimentadas?

- Os mexicanos cultivam o paladar, Teresa. A cada mordida exploram as mínimas partículas dos alimentos que tocam o grande órgão sensitivo bucal. E a pimenta é o ingrediente que conduz ao orgasmo sensitivo do paladar.

- A pimenta ajuda os mexicanos a sentir o mundo com a língua, Dolores?

- Mais ou menos isso, pequena. Mas não se trata só de sentir o mundo com a língua. É atingir o clímax da sensação do paladar. A pimenta ajuda a abrir os poros sensitivos, e por isso quanto mais picante melhor.

- Os mexicanos devem ser bons amantes... Posso sentir o mundo com a língua também, Dolores? Posso?

- Vamos, menina. Precisamos de uma tequila.
Tijuana, 25 de setembro de 2006.

Friday, September 22, 2006

Diário de Transbordo - Parte V: Tomates, muros e girafas


As incursões jornalísticas de Dolores não só a conduzem á aldeias indígenas paradisíacas. Há sempre um preço a ser pago. Assim que, numa semana de furacões naturais e políticos, Dolores foi lançada na cova dos leões.

O editor de bigode zapatista a enviou sem dó nem piedade para a Câmara de Deputados, para cobrir uma seção especial de avaliação da política exterior mexicana durante o governo de Vicente Fox. Encontrou na alcova um sujeito com cara de bonachão, conhecido nacionalmente como "Rei dos Tomates". Após sair ilegalmente da terra de Emiliano rumo aos Estados Unidos, o tal deputado fez fortuna do lado de cima da linha do Equador, expandindo as plantações da fruta e escravizando seus compatriotas, que não tiveram a sorte de nascerem com o seu talento empreendedor.

Baseado em seu case particular de sucesso, o tomateiro declarou, em alto e bom tom, que nada tinha contra a fuga em massa (3,5 milhões nos últimos seis anos, segundo dados oficiais) de mexicanos para os braços do Tio Sam. Além do tomateiro, outras quatro centenas de caudilhos subiram em seus poleiros para proferir estruturados discursos sobre o tema. Entre uma fala e outra, Dolores chupava balas de tamarindo, desenhava obscenidades no bloco de notas, embaçava com o hálito as lentes das câmeras dos fotógrafos para aliviar o tédio.

Foram seis infinitas horas de análises estratégicas para convencer os mexicanos de que os norte-americanos têm todo o direito de construir um muro extra de dois quilômetros de extensão na fronteira. A decisão já havia sido tomada, não havia mais nada a ser feito, então que o povo se convencesse logo de que precisaria fazer um pouco mais de ginástica para chegar ao outro lado. E no fundo, no fundo, se analisado por esse ângulo, Bush está até fazendo um favor para os pançudos mexicanos: um muro a mais para pular lhes faria desgastar as tortillas e burritos acumulados pelo mau hábito da gula.

Ao final da seção, Dolores sentiu-se como se tivesse sido pisoteada por tomates gigantes. Na sala de imprensa da Câmara, rodeada de coleguinhas nativos, comentou que achava impressionante que entre quatro centenas de deputados, nenhum dele houvesse questionado, nem por um segundo, as razões que motivam os mexicanos a pular o muro. Só falavam de como amenizar a relação diplomática, como humilhar os mexicanos sem ofendê-los, o que fazer para que os latinos compreendessem que aquela era uma questão de soberania nacional (palavra exclusiva para os países do Sul).

Um dos repórteres de uma TV local sorriu amarelo, e sugeriu que Dolores não expusesse tão claramente seu ponto de vista. Que no México não havia mais censura, justamente porque a imprensa concordou em ser mais cordial com os governantes. Recebeu o conselho como quem recebe uma facada no peito. Caiu, desfalecida, diante do computador e, de um fôlego só, escreveu a pauta encomendada.

Relatou, seguindo todos os protocolos oficiais, as declarações perfeitinhas dos deputados. Mas na conclusão, na parte que lhe cabia opinar (uma das excentricidades da imprensa mexicana), declarou que, obviamente, deveria haver alguma nobre razão que justificasse o posicionamento pacífico dos senhores deputados frente á construção do muro duplo na fronteira. Entre tantas possíveis, havia uma em particular que lhe parecia mais próxima da índole dos doutores bom-samaritanos. Acreditava Dolores que os senhores deputados haviam mais uma vez se curvado aos caprichos de Bush, pois pensavam no bem-maior que chegaria nos próximos anos: a conquista de uma estatura maior para o povo mexicano.

Trata-se de uma teoria darwinista, baseada na seleção natural. Ao que tudo indica, num futuro bem próximo, aqueles que não conseguirem pular o muro não conseguirão sobreviver. Mas como a vida não se rende tão fácil, tal qual ocorrera com os pescoços das girafas, os mexicanos começarão a nascer com pernas mais longas, para pular o mundo e encontrar nova vida do lado de lá da fronteira. A conseqüência direta desse “aparente incômodo diplomático” será o aumento da estatura dos mexicanos no próximo século. Certamente é essa a razão, concluiu Dolores, que move os senhores doutores deputados.

Quando o editor recebeu a nota, a transferiu sumariamente para a editoria de culinária.

Cidade do México, 20 de setembro de 2006.

Monday, September 18, 2006

Diário de Transbordo - Parte IV: 15 de setembro



Dolores acordou sobressaltada com o estalar dos fogos de artifício. Dirigiu-se até a varanda do singelo apartamento na Colônia Condessa, bairro de intelectuais mexicanos, e encontrou a capital coberta de verde, vermelho e branco. Os pequenos corriam de um lado para o outro da Avenida Chapultepec, lançando bolhas de sabão na atmosfera empoeirada da capital; os vendedores de tortillas atendiam aos transeuntes com incomum impaciência, como se o descaso fosse capaz de repelir futuros e indesejados clientes.

Pareceu-lhe final de Copa do Mundo: lojas fechadas, carros em disparada, bêbados perambulando oscilantes antes do meio-dia. Como fosse dada ä celebrações, sem dar crédito ä finalidade, Dolores resolveu comprar, de um dos diversos vendedores de quinquilharias patrióticas que disputavam o metro quadrado das esquinas, uma camiseta tricolor. E assim, senhora de nova nacionalidade, misturou-se ao povo cor de melaço, numa caminhada até a Praça do Zócalo – um desses circos de poder de causar inveja ä Casa Branca: nela se amontoam os prédios dos três Poderes, a Catedral Metropolitana e, em quinto plano, abafadas pela imponência dos edifícios governamentais, as ruínas das civilizações indígenas.

Encontrou Dolores um rio de 250 mil cabeças tricolores, e lembrou-se, com adiantado saudosismo, das tardes de Domingo no Maracanã. Repentinamente percebeu-se presa num labirinto de bandeiras, desde onde saltavam palavras de ordem contra o governo. Ao contrario do hino da nova pátria, foi assaltada por brados uníssonos do povo inflamado: “Es um honor estar com Obrador! Es um cabrón, él que está com Calderón!”.

Assombrada pela maravilha de contestar a ordem instaurada – um de seus principais prazeres – Dolores deu sete voltas na Praça do Zócalo, deixando-se levar pela tramontana democrática, que soprava forte e devastadora, fazendo-a trepidar de excitação. O engravatado Calderón, com cara de invasor espanhol, cabelos colados com gel, não lhe caía bem. Nunca escondeu seu namoro com o bushiano Fox, e sua primeira ação como presidente da nação de gente cor de melaço foi enviar uma carta para o presidente da América rica, lamentando o massacre dos norte-americanos pelos terroristas petroleiros, há cinco primaveras.

Ao ler a notícia no jornal para o qual acabara de começar a prestar serviço de artesã de letras, Dolores pensou em sugerir uma pauta sobre as cartas que foram enviadas pelos presidentes da América rica aos presidentes da nação cor de melaço, lamentando a morte dos pobres infelizes dessa terra, vítimas dos ataques terroristas de fome e de analfabetismo. Mas desistiu logo que percebeu que não havia material de trabalho.

O tal Obrador, por outro lado, lhe enchia os olhos: citava Che, andava de namoricos com o Marcos, falava de reforma agrária, atacando, sem meias palavras, a Casa Branca. Seguia assim enamorada do “peixe mexicano” até que um grupo de repórteres bêbados, numa dessas noites quentes numa cantina do Distrito Federal, apresentou a ela provas de que seu queridinho era um grande marqueteiro populista, que levava uma vida bem diferente do discurso que pregava, e que agora estava prestando um desserviço ao povo cor de melaço, destruindo, com sua soberba, todas as conquistas eleitorais dos últimos seis anos. Dizia-se vítima de perversa fraude eleitoral, e por isso conclamava o povo a exigir novas eleições.

Atordoada pelos gritos do povo ensandecido e sem saber se gritava por Calderón ou Obrador, deixou-se cair, exausta, diante das ruínas aztecas; e com a mão esquerda recostada sobre o peito, entoou solitária e amargamente o hino brasileiro, ä meia-noite do dia 15 de setembro – aniversário de independência da nação mexicana.

Cidade do México, 15 de setembro de 2006.


Diário de Transbordo - Parte III: Teresa e as Tarahumaras


No mapa, a Serra Tarahumara, ao sudoeste do estado de Chihuaua, reluzia ante os olhos de Dolores e Teresa. O estômago de Dolores ardia pelo excesso de pimenta dos tacos e (embora jamais fosse capaz de confessar) de ansiedade pelo desconhecido. Teresa, ao contrário, parecia ter novo sopro de vida, e saltava, oxigenada, por entre os trilhos do trem, que chegaria a alcançar 2.400 metros de altura.

Durante as seis horas de trajeto pelo coração da Serra Mãe Ocidental, Teresa manteve os olhos atados ao verde de intensidade única, enfeitiçada pelas milhares de borboletas amarelas que voavam juntas, emoldurando os pinheiros ao longo dos trilhos. Dolores, por sua vez, a observava, nostálgica de seu tempo de infância, quando não precisava ir tão longe para despojar-se das dores e ver mais cores.

Por força do furacão e das chuvas que haviam sacrificado o estado na última semana, o trem não pode avançar até a cidade de Creel, destino final das viajantes. Enfrentaram, pois, duas horas de caminhada na serra, que custou a Dolores uma terrível dor de coluna, e a Teresa, algumas picadas de mosquitos inofensivos e dois leves arranhões na canela.

Souberam que enfim haviam chegado quando se depararam com duas meninas cor de melaço, grandes olhos caramelos, cabelos negríssimos, envoltas com tecidos de cores vibrantes. Ao avistar as duas correndo livres pelos campos de flores amarelas, Teresa saiu em disparada, e abraçou as duas crianças (que a esta altura já estavam apavoradas) como se fossem velhas conhecidas. Teresa fala a linguagem universal dos pequenos, e por isso, após recobradas do susto, as três começaram a interagir como irmãs de toda a vida, esnobando as barreiras lingüísticas.

Dolores resfolegava, esforçando-se para alcançar Teresa e as pequenas Tarahumaras. E quando finalmente, rendida pelo cansaço, deixou-se desabar sobre o tapete de flores amarelas, olhou ao redor e descobriu o Belo. Extasiada, pensou que em Creel havia tanta beleza que não cabia no mundo. Sentiu-se indigna, com suas calças jeans, mochila de viajante errante e câmera fotográfica.

Curvou a cabeça por longos minutos, e de joelhos entregou-se ao solo, como se a prostração fosse capaz de lavar-lhe de suas impurezas. Quando enfim recobrou o ânimo para erguer-se, sentiu-se três vezes mais indigna, ao deparar-se com uma floresta de pedras em formato de cogumelo, adornada por casas de madeira, como as das fábulas de sua infância.

O vento soprava leve, carregando o aroma de flores brancas e amarelas, mesclado com uma doçura de mel, que só deveria soprar naquele pedaço intocado de mundo. Os Tarahumaras seguiam no exercício cotidiano da beleza, enxaguando seus trajes arco-íris no espelho d´água do translúcido rio da Serra de Chihuaua, cavalgando em potros selvagens e carregando lenha para aquecer suas noites estreladas.

Dominada por súbito sentimento maternal, Dolores esqueceu-se de sua indignidade, e com os olhos buscou Teresa. Não a encontrando, correu aflita por entre os campos e rochas infinitas, mas não encontrou nenhum sinal de existência das três meninas. Inutilmente tentou comunicar-se com uma mãe Tarahumara, que tecia com surpreendente habilidade os fios multicoloridos de um rebozo, enquanto seu bebê dormia o sono dos anjos, aninhado em seu ventre. De nada valia seu estrangeiro espanhol em território tzotsil.

Correu ao sabor do vento Tarahumara em direção ao centro da cidade, e desesperou-se ao perceber que os raios solares já se despediam, e não havia nenhuma cabine de informação turística aberta, delegacia de polícia ou qualquer outro lugar onde pudesse conseguir ajuda para encontrar sua pequena.

Perambulou durante toda a madrugada, na busca inútil por uma criança que mal conseguia descrever, pois a cada dia transfigurava-se, e não se deixava reconhecer pelos traços evidentes da carne. Sentiu-se sozinha e impura, com os pés descamados pelo excesso de caminhar, as costas frias pelos ventos noturnos que nada tinham de doces, e um vazio na alma que só os que perdem um amor sabem descrever.

Não pôde dormir pelo excesso de ausência que sentia sem sua menina para embaraçar-lhe os cabelos, atordoar-lhe com perguntas sem respostas, rir-se de seus medos. Acomodou-se como pôde sobre uma rocha gélida e escorregadia, e entregou-se ä observação do Belo, no céu pintado por estrelas da manhã e a Lua quase transparente.

Com os olhos cobertos de água, descobriu no céu três pontos de luz que se moviam como vaga-lumes em festa. E sua alma preencheu-se de revigorada alegria quando reencontrou a sua Teresa, transfigurada em luz na Serra de Chihuaua.

Chihuaua, 10 de setembro de 2006.

Wednesday, September 13, 2006

Diàrio de Transbordo – Parte II: Dolores descobre o Pacìfico


Tendo chegado à barulhenta e empoeirada Cidade do México, apòs 12 horas de turbulências aéreas, Dolores foi conduzida à cidade de Toluca, onde outro vôo a aguardava.

No caminho encontrou manifestantes pró-Obrador, que proferiam palavras de ordem contra o presidente eleito Calderòn, que acabara de assumir o governo, apòs um demorado e duvidoso processo de apuração eleitoral; esbarrou em vendedores de tacos; tropeçou em famélicas crianças de grandes olhos indígenas.

Adormeceu com o chacoalhar do jatinho que perfurava nuvens carregadas, e acordou, duas horas mais tarde, tendo abaixo dos olhos a Baixa Califórnia. Surpreendeu-se com a visão, e já acostumada com os freqüentes surtos de fantasia, perguntou-se onde terminava a vida e onde começava a imaginação.

Seria possível que durante o curto espaço de seu sono o deserto de fòsseis urbanos houvesse se convertido num oceano germinante? Temendo perder o instante de fantasia entregou seus pés às águas translúcidas e descobriu, gargalhando com o roçar de escamas sobre seu calcanhar, que em nenhum lugar do planeta se trepa tanto quanto em San Josè Los Cabos, também conhecida como “A entrada do Pacìfico”.

Cardumes multicoloridos., tartarugas, pelicanos, leões-marinhos...todos estão trepando sem descanso no Pacifico! Trepam, indiferentes ao Calderòn e ao Obrador; trepam, indiferentes ao furacão que deixou graves estragos nas rodovias próximas; trepam, indiferentes à fome dos índios massacrados pela ganância dos vizinhos norte-americanos; trepam sobre os pés de Dolores, diante de seus olhos, sobre as pedras, no ar, no fundo do mar...

Descobriu Dolores que o Pacìfico è um oceano de còpulas, onde peixes, pelicanos, tartarugas e leões-marinhos vivem movidos pelo exercício frenético de compartilhar sementes de existência. E a natureza os abençoa, agraciando-os com o mais belo ninho de amor que qualquer deus seria capaz de conceber.

San Josè Los Cabos, 9 de setembro de 2006.

Diàrio de Transbordo - Parte I: Dolores e os colombianos

Mais tempo levou Dolores no exercício parcimônico de eleger o autor que a acompanharia nas doze horas de vôo até a Cidade do México que no ato de organizar os pertences essenciais a sua sobrevivência no exílio voluntário. Certamente só sentiria as conseqüências de tamanho desleixo - ocasionado, como se pode constatar, pelo vìcio obstinado pelas letras – quando no destino final percebesse que as calcinhas ficaram esquecidas na gaveta, as botas de couro debaixo da cama, e o casaco no cabide atrás da porta. Mas todos esses bens cotidianos lhe pareciam absolutamente desnecessários ante à grandeza de gozar da companhia do livro certo para abençoar o inìcio da viagem.

Entre todos os livros que lhe aguardavam impacientes para serem lidos nas estantes dos sebos decadentes do Centro da cidade ou na charmosa Travessa de Ipanema, caiu-lhe nas mãos os “Doze contos peregrinos” de Garcìa Márquez. No ano anterior, quando se preparava para seguir a mesma rota, conheceu as ainda anônimas putas tristes. Mais encantada pelo tìtulo que pelo autor, a quem conhecia com certa intimidade, mas por vezes a aborrecia com tantas descrições metódicas, elegeu-as como companheiras para aquela que seria sua primeira incursão à terras mexicanas. Ao recordar das horas de gozo sensitivo que as putas lhe proporcionaram a vinte mil metros de altura, Dolores não teve dùvidas de que o colombiano seria o escolhido para acompanhá-la durante as longas horas de ócio aéreo.

...

Acomodou-se como lhe convinha ao lado da claustrofòbica janela, e antes que qualquer desconhecido ameaçasse um inconveniente inìcio de conversa, cobriu os olhos com o cobertor. A àquela hora da manhã só a promessa de mais algumas horas de sono a seduzia. Adormeceu, indiferente à turbulência que já causava náuseas em alguns passageiros de tripas mais sensíveis. Sonhou que, assim como os livros, havia uma infinidade de sonhos agrupados numa prateleira esperando para serem sonhados por ela. Escolheu um ao acaso, e sonhou que Garcìa Márquez sonhava com ela.

Acordou sobressaltada pelos gritos da aeromoça, que discutia com seu vizinho de cadeira. Até onde conseguiu ouvir, entendeu que discutiam pois o desconhecido havia insultado a pátria da garçonete aérea, alegando que no Panamá não havia nada alèm de um canal vendido e gente besta, e que a sua terra, Colômbia, era infinitamente superior em belezas naturais e riquezas econômicas. Desprendida de qualquer postura profissional, a aeromoça retrucou, veemente, alegando que tudo o que havia de riqueza na Colômbia se devia unicamente ao trafico de drogas, e que todos os colombianos eram dependentes físicos e químicos dos safados dos estadunidenses.

O espetáculo de tragédias americanas tirou o sono de Dolores. Pediu um café preto à panamenha e resgatou os doze peregrinos do fundo da mochila. Mas antes que conseguisse terminar a leitura das orelhas, o inconveniente colombiano arrancou-os das mãos dela, encantado com as letras em português. Enumerou, vaidoso, as obras que lera do compatriota, tecendo incríveis comparações com os cenários descritos nas obras de Márquez com as paisagens de sua terra Natal, Barranquilla. Vangloriou-se das belezas de Bogotá, capital, segundo ele, difamada pela imprensa internacional e pelos filmes de Hollywood, e convidou Dolores para conhecer o Carnaval colombiano, realizado a cada dezembro. Como não conseguisse arrancar qualquer sinal de interesse por parte da sonolenta jovem, lhe indagou:

- À que te dedicas?

Sem voltar os olhos para o indesejado companheiro de viagem, Dolores balbuciou:

- Eu alugo sonhos.

Demonstrando familiaridade com a lógica do absurdo, o colombiano retrucou:

- Quiero dos.

Surpresa com a reação do colombiano, Dolores esqueceu-se de vez de seus doze peregrinos e entregou-se aos devaneios verbais do vizinho:

- Custam dois mil pesos colombianos.

Tranqüilo e metódico, como se durante toda a sua vida tivesse se dedicado a alugar sonhos no avião, retirou a quantia de dentro da carteira de couro marrom e entregou-a a Dolores. Radiante pela descoberta de um novo locatário de utopias, Dolores guardou a quantia (equivalente a 1 Real) dentro do bolso dianteiro da calça, e com a ponta dos dedos alcançou os olhos do colombiano.

Escolheu ao acaso dois dos doze contos peregrinos, e recitou cada palavra como se fosse uma professora de retórica de alguma escola grega, ansiosa de que seus discípulos sorvessem o sentido de cada sìlaba para tecerem, cada um a seu modo, suas noções de fantasia e realidade.


Panamá, 8 de setembro de 2006.


Tuesday, September 05, 2006

ELAS SE DESPEDEM




- Dolores, Dolores, olha só o que achei no jardim esta manhã! Será que é pra mim?

- Deixe-me ver, menina. Bonito envelope.

- É pra mim, Dolores? É?

- Sim, querida. Alguém deve saber que você está partindo e quis te fazer uma surpresa.

- Quem é? Quem é? Lê pra mim, Dolores! Lê logo!

- Aquiete-se, menina impaciente! Deixe-me ver...Aqui diz:


“A vez primeira que eu fitei Teresa,

Como as plantas que arrasta a correnteza,

A valsa nos levou nos giros seus

E amamos juntos E depois na sala

"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...

- Teresa, Teresa, quem te escreveria versos de amor tão intensos? Por onde tens pousado, pequena?

- Não quebre a poesia, Dolores! Poesia quebrada não faz bem pra alma. Continua, vai!

“E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .

E da alcova saía um cavaleiro

Inda beijando uma mulher sem véus

Era eu Era a pálida Teresa!

"Adeus" lhe disse conservando-a presa

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"


- Alcova, Teresa?! Mulher sem véu? O que fazes durante o meu silêncio, menina?

- Ai, Dolores, já te disse para não interromper! Assim eu não consigo sorver os versos!


“Passaram tempos séculos de delírio

Prazeres divinais gozos do Empíreo

... Mas um dia volvi aos lares meus.

Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "

Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"


Quando voltei era o palácio em festa!

E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta

Preenchiam de amor o azul dos céus.

Entrei! Ela me olhou branca surpresa!

Foi a última vez que eu vi Teresa!”

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"



- Lindo, não acha, Dolores? Quem foi que escreveu?

- Você deve saber, menina.

- Não sei não. Quem me escreve sempre é o Bandeira, mas ele não escreveria algo tão bonito pra mim. Da última vez ele disse que as minhas pernas eram estúpidas, que a minha cara parecia uma perna, e que meus olhos eram velhos.

- Sorte a sua, que ao menos inspira versos, Teresa... Mas dessa vez você acertou. Não foi o Manuel quem lhe escreveu; foi Castro Alves... E o papel ainda cheira a tabaco...

- Ah, Dolores, não sejas ingrata com teu Neruda. Não passa uma semana sem que ele te escreva. Lê para mim a última carta que ele deixou debaixo do teu travesseiro, vai?

- És jovem demais para minhas dores, Teresa.

- Se não me permites vê-las, se só de cores pintas meu mundo, como queres que eu cresça?

“Dolores…
Apenas te he dejado,
vas en mí, cristalina
o temblorosa,
o inquieta, herida por mí mismo
o colmada de amor, como cuando tus ojos
se cierran sobre el don de la vida
que sin cesar te entrego.

Amor mío
nos hemos encontrado
sedientos y nos hemos
bebido toda el agua y la sangre,
nos encontramos
con hambre
y nos mordimos
como el fuego muerde,
dejándonos heridas.

Pero espérame,
guárdame tu dulzura.
Yo te daré también
una rosa”.

- Por que choras, Dolores?

- Pegue suas malas, menina. E não esqueça das cartas, para não esquecermos de nós mesmas durante a viagem.