Friday, September 22, 2006

Diário de Transbordo - Parte V: Tomates, muros e girafas


As incursões jornalísticas de Dolores não só a conduzem á aldeias indígenas paradisíacas. Há sempre um preço a ser pago. Assim que, numa semana de furacões naturais e políticos, Dolores foi lançada na cova dos leões.

O editor de bigode zapatista a enviou sem dó nem piedade para a Câmara de Deputados, para cobrir uma seção especial de avaliação da política exterior mexicana durante o governo de Vicente Fox. Encontrou na alcova um sujeito com cara de bonachão, conhecido nacionalmente como "Rei dos Tomates". Após sair ilegalmente da terra de Emiliano rumo aos Estados Unidos, o tal deputado fez fortuna do lado de cima da linha do Equador, expandindo as plantações da fruta e escravizando seus compatriotas, que não tiveram a sorte de nascerem com o seu talento empreendedor.

Baseado em seu case particular de sucesso, o tomateiro declarou, em alto e bom tom, que nada tinha contra a fuga em massa (3,5 milhões nos últimos seis anos, segundo dados oficiais) de mexicanos para os braços do Tio Sam. Além do tomateiro, outras quatro centenas de caudilhos subiram em seus poleiros para proferir estruturados discursos sobre o tema. Entre uma fala e outra, Dolores chupava balas de tamarindo, desenhava obscenidades no bloco de notas, embaçava com o hálito as lentes das câmeras dos fotógrafos para aliviar o tédio.

Foram seis infinitas horas de análises estratégicas para convencer os mexicanos de que os norte-americanos têm todo o direito de construir um muro extra de dois quilômetros de extensão na fronteira. A decisão já havia sido tomada, não havia mais nada a ser feito, então que o povo se convencesse logo de que precisaria fazer um pouco mais de ginástica para chegar ao outro lado. E no fundo, no fundo, se analisado por esse ângulo, Bush está até fazendo um favor para os pançudos mexicanos: um muro a mais para pular lhes faria desgastar as tortillas e burritos acumulados pelo mau hábito da gula.

Ao final da seção, Dolores sentiu-se como se tivesse sido pisoteada por tomates gigantes. Na sala de imprensa da Câmara, rodeada de coleguinhas nativos, comentou que achava impressionante que entre quatro centenas de deputados, nenhum dele houvesse questionado, nem por um segundo, as razões que motivam os mexicanos a pular o muro. Só falavam de como amenizar a relação diplomática, como humilhar os mexicanos sem ofendê-los, o que fazer para que os latinos compreendessem que aquela era uma questão de soberania nacional (palavra exclusiva para os países do Sul).

Um dos repórteres de uma TV local sorriu amarelo, e sugeriu que Dolores não expusesse tão claramente seu ponto de vista. Que no México não havia mais censura, justamente porque a imprensa concordou em ser mais cordial com os governantes. Recebeu o conselho como quem recebe uma facada no peito. Caiu, desfalecida, diante do computador e, de um fôlego só, escreveu a pauta encomendada.

Relatou, seguindo todos os protocolos oficiais, as declarações perfeitinhas dos deputados. Mas na conclusão, na parte que lhe cabia opinar (uma das excentricidades da imprensa mexicana), declarou que, obviamente, deveria haver alguma nobre razão que justificasse o posicionamento pacífico dos senhores deputados frente á construção do muro duplo na fronteira. Entre tantas possíveis, havia uma em particular que lhe parecia mais próxima da índole dos doutores bom-samaritanos. Acreditava Dolores que os senhores deputados haviam mais uma vez se curvado aos caprichos de Bush, pois pensavam no bem-maior que chegaria nos próximos anos: a conquista de uma estatura maior para o povo mexicano.

Trata-se de uma teoria darwinista, baseada na seleção natural. Ao que tudo indica, num futuro bem próximo, aqueles que não conseguirem pular o muro não conseguirão sobreviver. Mas como a vida não se rende tão fácil, tal qual ocorrera com os pescoços das girafas, os mexicanos começarão a nascer com pernas mais longas, para pular o mundo e encontrar nova vida do lado de lá da fronteira. A conseqüência direta desse “aparente incômodo diplomático” será o aumento da estatura dos mexicanos no próximo século. Certamente é essa a razão, concluiu Dolores, que move os senhores doutores deputados.

Quando o editor recebeu a nota, a transferiu sumariamente para a editoria de culinária.

Cidade do México, 20 de setembro de 2006.

1 Comments:

At 6:54 AM, Blogger Mauro Sérgio Farias said...

Eis que Dolores se depara, em plagas mexicanas, com dois males que também vicejam à farta em terras tupiniquins:

1) Uma elite colonizada e americanófila, que nutre profundo desprezo por seu próprio povo e cultura, defendendo ativamente os interesses do irmão do norte. Mesmo que à custa da vida e dignidade dos seus compatriotas.

2) Uma imprensa que se auto censura, num gesto de servidão absolutamente voluntária. Que prefere ser porta-voz do poder estabelecido a honrar sua condição de concessão pública.

Muitas serão as dores e poucas serão as cores em alguns momentos da jornada. Esperamos, contudo, que, seguindo o devaneio darwinista de nossa querida Dolores, o nosso povo nasça com olhos e ouvidos cada vez mais abertos, para buscar a verdade atrás de cada discurso. E corpos mais dispostos para a luta e para o amor físico. E mentes cada vez mais abertos ao sonho e à transcendência.

Com saudades e em fraternura, meus sinceros votos de boa sorte.

Mauro

 

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