Monday, October 30, 2006

Diário de Transbordo - Parte XV: Mitos e Lendas - La Malinche




- Dolores, Dolores, descobri sua verdadeira identidade!

(Silêncio)

- Ah, é, Teresa? Quem sou eu, segundo você?

- Você é a Malinche, a mulher que usa a língua para circular em dois mundos, e trair os que estão do lado de lá em favor dos que estão do lado de cá ! Você não conhece a história?

- Não, Teresa. Não conheço quem dizes que sou.

- A Malinche foi uma mulher que viveu na época da invasão espanhola aqui no México, lá pelos anos de mil e quinhentos e minha vó. Ela foi vendida como escrava pelo seu padrasto, que, acho, não devia gostar muito dela. Enquanto estava presa, ela acabou aprendendo a língua maia, com os índios que ficavam no cativeiro com ela. Ela foi vendida aos invasores, e também começou a aprender espanhol, porque era muito sabida. Nessa mesma época, o famoso invasor Hernán Cortés estava chegando por aqui, logo se entusiasmou com a habilidade lingüística da Malinche, e aí, língua vai, língua vem, acabaram fazendo um filho. O Cortés carregava a Malinche para tudo quanto era lado, para negociar com os índios. Eu acho que ela não traduziu direito, porque a cada troca os índios mexicanos ganhavam enxadas enquanto os invasores espanhóis enchiam os bolsos de ouro.

- Bela história, Teresa. Mas é assim que você me vê? Uma sábia ex-escrava traidora?

- Ai, Dolores, você não entendeu nada. Não é pra interpretar ao pé da letra. Você também trai pela língua, mas só pra tentar ajudar os que não tem voz.

Cidade do México, 21 de outubro de 2006.

Saturday, October 28, 2006

Diário de Transbordo - Parte XIV: Mitos e Lendas - La Llorona


Na noite de 19 de outubro, Dolores não encontrou consolo na caneca de vinho caseiro da adega cubana. Sentia-se sufocada de experiências, angustiada pelo porvir e amedrontada ante a necessidade de abandonar seres cativados. Alcançou a rua balançando o vento com a saia rodada, marcando o caminho do centro da capital mexicana com a água e o sal que brotavam de seus olhos.

Ouviu passos atrás de si, mas preferiu ignorar a presença inoportuna na madrugada solitária. Caminhou a passos largos, mas quanto mais se apressava, mais sentia a presença inquietante da mulher que a seguia. O estalar do salto no asfalto corroído pelo peso dos automóveis lhe dava a certeza de que era uma alma feminina que a perseguia. A respiração dócil, embora apressada, não lhe deixava dúvidas.

Virou bruscamente na primeira rua à esquerda, e escondeu-se atrás de dois latões de lixo povoados de ratazanas. Esperou até ter a certeza de que a companhia indesejada havia se esvaído, e entregou-se novamente à solidão noturna da capital.

Encontrou, aliviada, o Anjo da Independência, e deixou-se cair nos degraus construídos a seus pés. Quando novas gotas de água e sal tocaram a escada, ouviu soluços, mais angustiados que os dela, a seu lado. Surpresa, tentou mirar nos olhos da mulher, que se cobria com um longo vestido branco, mas um véu de uma neblina espessa encobria seu rosto.

Ao seu redor, uma nuvem cinza carregada exalava um vento frio, que soprava uniforme e intenso, como se fosse manipulado por uma força superior. O pranto da mulher era tão voraz, que fazia temblar os degraus do monumento, e Dolores precisou fazer um esforço sobre-humano para não ser levada pela correnteza das lágrimas da fantasmagórica criatura.

Impossibilitada de consolar ou de ser consolada, Dolores uniu-se à Chorona em seu pranto incontido, e naquela noite chorou por todos os amores perdidos, por todas as alegrias compartilhadas, por todas as experiências mal-vividas, por todos os sonhos conquistados e pelas frustrações que hão de vir. E deixou-se desaparecer, no rio de sal e água, nos braços da figura mitológica mexicana.

Cidade do México, 20 de outubro de 2006.


A Lenda:

No século XVI, os moradores da antiga Tenochtitlan trancavam todas as noites suas portas e janelas para não deixar entrar em casa o pranto de uma mulher. Aqueles que procuraram averiguar a causa do pranto declararam que a claridade lhes permitia ver apenas uma espessa neblina rente ao solo e uma mulher, vestida de branco e com um véu. A mulher percorria a cidade chorando, e sempre se detinha na Plaza Mayor, onde ajoelhava-se voltada para o oriente e, em seguida, levantava-se para continuar sua ronda. Ao chegar às margens do lago Texcoco, desaparecia. Poucos homens se arriscaram a aproximar-se do espectro fantasmagórico - aqueles que o fizeram sofreram com espantosas revelações ou morreram.

Sunday, October 22, 2006

Diário de Transbordo - Parte XIII: O lugar das casas



- Teresa, não faça birra. Temos que voltar para casa.

- E onde é que fica a nossa casa, Dolores?

- Do outro lado do oceano, pequena.

- E porque a nossa casa não pode ser aquí?

- Por que do outro lado estão os que nos geraram, Teresa. Lá naquela linha, onde parece que o mundo acaba, é que está a nossa terra, nossa riqueza, nosso povo.

- Mas a maioria dos que estão lá agora vieram de outras casas. Até aqueles que nos geraram vieram de otros oceanos, Dolores. Então se fosse assim eles também não estão em casa, né?

- É, Teresa. Quer dizer, vendo dessa forma, talvez.

- Então se eles tivessem voltado para casa, ou se nunca tivessem saído de lá, lá podia ser aquí, nós poderíamos ter sido geradas em outros oceanos, ou nesse oceano aquí, e então essa seria a nossa casa.

- Ai, Teresa, não me venha com seus sofismos. Precisamos comprar logo a passagem de volta. Anda, me dá a mão!

- Então promete que a gente vai voltar, e que um dia aquí vai ser a nossa casa.

- Não, pequena, não posso te prometer isso.

- Então promete que a gente vai ter várias casas, em todos os oceanos possíveis, para nunca ter que se despedir.


- Sim, meu amor. Isso eu te prometo.

- Jura sem cruzar os dedos e olhando para mim sem rir!


- Juro, juro, juro, Teresa. Por nós três.

Michoacán, 14 de outubro de 2006.


Diário de Transbordo - Parte XII: O diário de Teresa



No diário de Teresa há uma lista das melhores coisas da Cidade do México. Seus olhos de menina não se cansaram de ver, e por isso ainda encontra encantamento nas coisas tangíveis.

México: Dez motivos para te amar.

1- As descargas dos banheiros públicos são pedais;

2- O Globo aquí é coisa boa: é uma rede de padarias que vendem bolos feitos por fadas e deuses indígenas;

3- O metrô e o ônibus custam menos de 60 centavos e passam de dois em dois minutos;

4- Posso assistir ao Chaves sem precisar sintonizar o SBT;

5- Há mariachis por todos os lados, e por isso parece que a cidade está dentro de uma caixinha de música gigante;

6- Os homens gostam muito de dançar e tem sempre uma rosa para dar quando a música acaba;

7- Ter barriga aqui é charme e bunda é diferencial;

8- Há crianças para onde quer que se olhe;

9- As pessoas falam cantando, e cada palavra parece uma ciranda de consoantes;

10- Os militantes de esquerda ainda acreditam em revolução social.



Cidade do México, 12 de outubro de 2006.

Tuesday, October 17, 2006

Diário de Transbordo - Parte XI: Dolores fora do corpo


- O que buscas fora de meu corpo? Não temes perder-se, Dolores?
- El hombre sólo se pierde mientras busca su objeto. Procura que la imaginación obre con todo su conjunto de razón, ingenio, sentimiento y pasión, sin esforzarse por olvidar la locura. Haz entonces de manera que vuelvan para mí los tiempos en que también vivía el futuro, en que nacían del fundo de mis espíritus cantos sin interrupción, en que nubes nacaradas cubrían la baja tierra, en que todos los cálices me daban maravillas; tenía el deseo de la verdad y la sed de ilusión. Cómo se me desgarra el seno! Todo mi ser se lanza en busca del nuevo!
- Que trema, pois, a minha carne. E que se levante esse novo espírito, com forma renovada. Pois o que é belo em verdade, não se perde para a posteridade.
(Coyoacán, 10 de outubro de 2006)

Wednesday, October 11, 2006

Diário de Transbordo - Parte X: Niños que marchan


Dolores levantou às quatro da manhã , vestiu sua calça mais velha, a blusa mais surrada, lavou o rosto para afastar o sono, e saiu cortando o vento rumo à estação de trem.

No vagão, os bêbados cantavam a noite perdida. A janela ia revelando uma paisagem cada vez mais cinza: muros grafitados, casas que ameaçavam desabar, árvores sem folhas.

Pensava onde esconderia seu estrangeirismo quando se juntasse à marcha de operários que caminhavam há doze dias rumo à capital da Cidade do México, para reivindicar melhores condições de emprego e a destituição de um governador tirano.

Havia recebido recomendações explícitas de que deveria fazer uma cobertura imparcial, isenta, sem emotividades - atributos esperados de qualquer repórter. Sabia que não conseguiria obedecer à orden castrativa, mas precisava do emprego.
Não pelo capital, que esse ela sempre arranjava um jeito de arrumar, mas porque lhe fascinava a idéia de que alguém lhe estivesse pagando para pintar papel com idéias.

Quando chegou em Chalco, umas das zonas mais miseráveis do país, ouviu a voz de Teresa:

- Eu gosto daqui. Esse lugar é tão feio, tão feio, tão feio, que as pessoas são mais bonitas. E isso só acontece quando falta o que falta.

Teresa correu aflita em direção ao rio de gente de pés calejados e chapéu de palha. Ebarrou em mastros de bandeiras vermelhas, sacos de ração
alimentar e em cães que disputavam com os manifestantes em número, fome e atenção.

Enquanto esperava que Teresa encontrasse o que estava buscando, Dolores deixou-se levar pela multidão, embalada por histórias de luta e resistência dos operários da Assembléia Popular de Oaxaca. Se desesperou ao ter a certeza de que não conseguiria escrever nenhuma linha sem manchar o jornal com seu sangue latino.

Quando já estava decidida a trocar o gravador por uma bandeira, avistou Teresa marchando, aos pulos, no olho da multidão .
Guiava em sua direcao um pequeno, como se carregasse uma coroa lapidada de diamantes.
- Quem é esse menino, Teresa?

- É a sua reportagem, Dolores. Agora você só precisa pintar ele no papel.

----------------------

A reportagem:
(Ao camarada Pardiñas, pela fome compartilhada)
Chalco, 8 de outubro de 2006.

Diário de Transbordo - Parte IX: A Luciana y Dolores



Te vi caminar, guardando en cada paso un poco de la historia
Tu historia, mujer de dos nombres, pasas en la sonrisa, que se encuentra en tu belleza serena
Belleza que no dice nada del pasado y donde quisiera guardar el futuro.

Te vi protestando
Te vi y ahora te acuerdo en la ausencia de tus nombres.
Te vi llena de silencio y en silencio te dije:

“Quiero que mis palabras te toquen,
En la distancia tomen tu oído
Pues sólo ellas se quedaron cuando se haya ido“.

(Oaxaca, 5 de outubro de 2006 - Poesía regalada durante la Marcha-Caminata por la Dignidad)

Monday, October 09, 2006

Diário de Transbordo - Parte VIII: Um chilango e as contradições do amor



- Sou anarquista. Não acredito no amor. Não da maneira como foi construído, atrelado à instituição familiar.

- É um bom argumento para fugir do casamento.

- Não, Dolores, eu quero me casar.

- Para poder criticar com fundamento quando a relação fracassar?

- Não, mulher. Para passar mais tempo ao seu lado, dormir e acordar todos os dias sentindo seu cheiro.

(Pausa)

- Os anarquistas também amam?

- Por não crerem em nada, os anarquistas constroem motivos para contestar. E o amor é um processo de construção simbólica de motivos para contestar a vida.

- Para mim os anarquistas só se preocupam em desconstruir.

- Isso foi antes da pós-modernidade. Agora nós seguimos na contramão da doutrina social que reza que o ser humano só precisa de prazer. Isso é uma babaquice: a dor é essencial para aguçar os sentidos.


- Meu caro anarquista, ao construir motivos para estar a meu lado, você não está buscando prazer?

- De maneira nenhuma, minha amada. Eu espero ardentemente a dor da partida.

Plaza del Zócalo, 2 de outubro de 2006

Diário de Transbordo - Parte VII: Malinche



Meu caro camarada
Para enamorar-me de ti bastaria tua pele amarela.
Cala, pois, a tua inteligência
E deixe-me cegar com o esplendor da tua beleza pré-hispânica

(A Durán)

Acapulco, 26 de setembro de 2006.