Monday, September 18, 2006

Diário de Transbordo - Parte IV: 15 de setembro



Dolores acordou sobressaltada com o estalar dos fogos de artifício. Dirigiu-se até a varanda do singelo apartamento na Colônia Condessa, bairro de intelectuais mexicanos, e encontrou a capital coberta de verde, vermelho e branco. Os pequenos corriam de um lado para o outro da Avenida Chapultepec, lançando bolhas de sabão na atmosfera empoeirada da capital; os vendedores de tortillas atendiam aos transeuntes com incomum impaciência, como se o descaso fosse capaz de repelir futuros e indesejados clientes.

Pareceu-lhe final de Copa do Mundo: lojas fechadas, carros em disparada, bêbados perambulando oscilantes antes do meio-dia. Como fosse dada ä celebrações, sem dar crédito ä finalidade, Dolores resolveu comprar, de um dos diversos vendedores de quinquilharias patrióticas que disputavam o metro quadrado das esquinas, uma camiseta tricolor. E assim, senhora de nova nacionalidade, misturou-se ao povo cor de melaço, numa caminhada até a Praça do Zócalo – um desses circos de poder de causar inveja ä Casa Branca: nela se amontoam os prédios dos três Poderes, a Catedral Metropolitana e, em quinto plano, abafadas pela imponência dos edifícios governamentais, as ruínas das civilizações indígenas.

Encontrou Dolores um rio de 250 mil cabeças tricolores, e lembrou-se, com adiantado saudosismo, das tardes de Domingo no Maracanã. Repentinamente percebeu-se presa num labirinto de bandeiras, desde onde saltavam palavras de ordem contra o governo. Ao contrario do hino da nova pátria, foi assaltada por brados uníssonos do povo inflamado: “Es um honor estar com Obrador! Es um cabrón, él que está com Calderón!”.

Assombrada pela maravilha de contestar a ordem instaurada – um de seus principais prazeres – Dolores deu sete voltas na Praça do Zócalo, deixando-se levar pela tramontana democrática, que soprava forte e devastadora, fazendo-a trepidar de excitação. O engravatado Calderón, com cara de invasor espanhol, cabelos colados com gel, não lhe caía bem. Nunca escondeu seu namoro com o bushiano Fox, e sua primeira ação como presidente da nação de gente cor de melaço foi enviar uma carta para o presidente da América rica, lamentando o massacre dos norte-americanos pelos terroristas petroleiros, há cinco primaveras.

Ao ler a notícia no jornal para o qual acabara de começar a prestar serviço de artesã de letras, Dolores pensou em sugerir uma pauta sobre as cartas que foram enviadas pelos presidentes da América rica aos presidentes da nação cor de melaço, lamentando a morte dos pobres infelizes dessa terra, vítimas dos ataques terroristas de fome e de analfabetismo. Mas desistiu logo que percebeu que não havia material de trabalho.

O tal Obrador, por outro lado, lhe enchia os olhos: citava Che, andava de namoricos com o Marcos, falava de reforma agrária, atacando, sem meias palavras, a Casa Branca. Seguia assim enamorada do “peixe mexicano” até que um grupo de repórteres bêbados, numa dessas noites quentes numa cantina do Distrito Federal, apresentou a ela provas de que seu queridinho era um grande marqueteiro populista, que levava uma vida bem diferente do discurso que pregava, e que agora estava prestando um desserviço ao povo cor de melaço, destruindo, com sua soberba, todas as conquistas eleitorais dos últimos seis anos. Dizia-se vítima de perversa fraude eleitoral, e por isso conclamava o povo a exigir novas eleições.

Atordoada pelos gritos do povo ensandecido e sem saber se gritava por Calderón ou Obrador, deixou-se cair, exausta, diante das ruínas aztecas; e com a mão esquerda recostada sobre o peito, entoou solitária e amargamente o hino brasileiro, ä meia-noite do dia 15 de setembro – aniversário de independência da nação mexicana.

Cidade do México, 15 de setembro de 2006.


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