Monday, December 25, 2006

Relembranças


Dolores despertou em Havana após vários anos de hipnose induzida pelo sistema. Viu a estrada amarela que rasgava o mar, o forte plantado na praia, o espetáculo dos canhões sonoros e centenas de dentes. Chamou por seus amigos, para que viessem ver as cores de Cuba, beber da vida luminosa e cerceada da ilha. Esperou pela resposta, mas seu grito oco ressoou no sino enferrujado do convento gregoriano da velha capital. Pensou ter morrido, e, por equívoco ou ironia divina, fora alçada direto ao paraíso, onde não se fere o olho com campanhas da coca-cola, nem o coração com crianças famintas. O paraíso era solitário e colorido, cercado de uma longa selva de sal e água. Os amores que ainda não conhecia não estavam lá. Nem os sabores e os aromas que ainda queria experimentar. Ao perceber a tragédia da castração, a beleza do paraíso se desvaneceu. Desejou estar no inferno, com campanhas da coca-cola e crianças famintas. A estrela que carregava no peito apertou-lhe o seio com cólera. Dolores era Eva, e sua maçã, a coca-cola. Cuba pareceu-lhe pequena demais em sua imensa pureza. E o seu Brasil grande demais em sua imensa pobreza. Sentiu o olhar atônito de Castro. Quis tocar a mão de Deus, mas a beleza reluzente do mar tropical ofuscou seus olhos. Afundou-se numa angústia de santidade, que não iria terminar nunca...

(Relembranças de Janeiro de 2006)

3 Comments:

At 7:16 PM, Anonymous Anonymous said...

Santas angústias que transformam...

 
At 5:23 AM, Anonymous Anonymous said...

Magnifico!!!!!!! Nem Bial escreveria melhor!!!!!
Saudades de vc!!!
Feliz Ano Novo!!!
bjs!!

Élida

 
At 7:32 AM, Blogger Mauro Sérgio Farias said...

Salve, minha querida!

Um grande beijo, com muita saúde e disposição de luta para o ano vindouro

Com saudades,

Mauro

 

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