Wednesday, February 21, 2007

CARIOCA - PARTE FINAL


Ergueu-se sem grande esforço, espalmando as mãos enrugadas de sal na areia fofa. Sentiu enquanto cruzava a Atlântica uma profunda sensação de milagre, como se em seu ventre carregasse o futuro. Encontrou os móveis ordenados, os quadros alinhados, os entes queridos mumificados nos porta-retratos. Mas não encontrou nenhum pedaço de si armazenado entre as quatro opacas paredes daquele apartamento. Toda a delicadeza de sua existência havia se perdido nas espumas do mar de Copacabana. Agora, sua vida era um ventre entreaberto, fecundado por um boto. O desejo de ser mãe era um sonho antigo, mas o superlativo de sua existência amedrontava os homens. Morria a cada noite, quando os sonhos revelavam que não encontraria na suposta outra metade o espanto de vida pela qual sua alma ansiava. Mas agora era mãe, e a vida fruía de seu ventre. Gargalhou da loucura de poder gerar. Sentiu a arfante respiração de mil peixes em sua barriga, e pressionada pelo excesso de ar, a bolsa estourou. A água salgada inundou o apartamento, derrubou a porta, invadiu corredores até a última onda alcançar a cobertura. Enquanto se afogava de liberdade, ouviu o choro confortante de uma criança. Mamãe, mamãe, mam..

Sunday, February 04, 2007

CARIOCA - PARTE II


Percebeu que já não conseguia mover tronco e membros. Flutuava como resto de alga, sobre a espuma branca do mar inerte. Sentiu-se profundamente livre, com as pernas abertas e a intimidade encharcada pela imensidão azul. Atraídos pela vivacidade de seu sangue, os peixes a rodeavam, encantados, fazendo-a gargalhar com o roçar de escamas sobre sua delicada pele. Já se divertia com a bóia viva de cardumes multicoloridos, quando encontrou os olhos absurdamente negros, parcialmente imersos na solidão do oceano. Permaneceu em estado letárgico, observando-o engolir, de uma só vez, todo o cardume, e em seguida enfiar as narinas entre as genitálias dela, e embebê-la de sua seiva. As ondas provocadas pelo êxtase da fecundação se encarregaram de devolvê-la à areia. Acordou no posto seis, sob os olhares atônitos dos banhistas.

Friday, February 02, 2007

CARIOCA


Naquele dia, vestiu a blusa que mais detestava. Justamente aquela que evidenciava todos os seus excessos. Saiu sem bater a porta, deixando a casa e seus mistérios à mercê da curiosidade alheia. Desceu as escadas, desejando não encontrar nenhum móvel, utensílio ou vestimenta caso regressasse. Cruzou a Atlântica sem olhar para o sinal, nem para os carros. Ouviu buzinas, xingamentos, uma batida seca. Levantou-se sem esforço. Daquele jeito, manchada de vermelho, a blusa bege ficava ainda mais repugnante. Saltou do asfalto para a areia. A blusa bege se afundou na imensidão do mar azul petróleo, até se perder de vista.