Monday, September 18, 2006

Diário de Transbordo - Parte III: Teresa e as Tarahumaras


No mapa, a Serra Tarahumara, ao sudoeste do estado de Chihuaua, reluzia ante os olhos de Dolores e Teresa. O estômago de Dolores ardia pelo excesso de pimenta dos tacos e (embora jamais fosse capaz de confessar) de ansiedade pelo desconhecido. Teresa, ao contrário, parecia ter novo sopro de vida, e saltava, oxigenada, por entre os trilhos do trem, que chegaria a alcançar 2.400 metros de altura.

Durante as seis horas de trajeto pelo coração da Serra Mãe Ocidental, Teresa manteve os olhos atados ao verde de intensidade única, enfeitiçada pelas milhares de borboletas amarelas que voavam juntas, emoldurando os pinheiros ao longo dos trilhos. Dolores, por sua vez, a observava, nostálgica de seu tempo de infância, quando não precisava ir tão longe para despojar-se das dores e ver mais cores.

Por força do furacão e das chuvas que haviam sacrificado o estado na última semana, o trem não pode avançar até a cidade de Creel, destino final das viajantes. Enfrentaram, pois, duas horas de caminhada na serra, que custou a Dolores uma terrível dor de coluna, e a Teresa, algumas picadas de mosquitos inofensivos e dois leves arranhões na canela.

Souberam que enfim haviam chegado quando se depararam com duas meninas cor de melaço, grandes olhos caramelos, cabelos negríssimos, envoltas com tecidos de cores vibrantes. Ao avistar as duas correndo livres pelos campos de flores amarelas, Teresa saiu em disparada, e abraçou as duas crianças (que a esta altura já estavam apavoradas) como se fossem velhas conhecidas. Teresa fala a linguagem universal dos pequenos, e por isso, após recobradas do susto, as três começaram a interagir como irmãs de toda a vida, esnobando as barreiras lingüísticas.

Dolores resfolegava, esforçando-se para alcançar Teresa e as pequenas Tarahumaras. E quando finalmente, rendida pelo cansaço, deixou-se desabar sobre o tapete de flores amarelas, olhou ao redor e descobriu o Belo. Extasiada, pensou que em Creel havia tanta beleza que não cabia no mundo. Sentiu-se indigna, com suas calças jeans, mochila de viajante errante e câmera fotográfica.

Curvou a cabeça por longos minutos, e de joelhos entregou-se ao solo, como se a prostração fosse capaz de lavar-lhe de suas impurezas. Quando enfim recobrou o ânimo para erguer-se, sentiu-se três vezes mais indigna, ao deparar-se com uma floresta de pedras em formato de cogumelo, adornada por casas de madeira, como as das fábulas de sua infância.

O vento soprava leve, carregando o aroma de flores brancas e amarelas, mesclado com uma doçura de mel, que só deveria soprar naquele pedaço intocado de mundo. Os Tarahumaras seguiam no exercício cotidiano da beleza, enxaguando seus trajes arco-íris no espelho d´água do translúcido rio da Serra de Chihuaua, cavalgando em potros selvagens e carregando lenha para aquecer suas noites estreladas.

Dominada por súbito sentimento maternal, Dolores esqueceu-se de sua indignidade, e com os olhos buscou Teresa. Não a encontrando, correu aflita por entre os campos e rochas infinitas, mas não encontrou nenhum sinal de existência das três meninas. Inutilmente tentou comunicar-se com uma mãe Tarahumara, que tecia com surpreendente habilidade os fios multicoloridos de um rebozo, enquanto seu bebê dormia o sono dos anjos, aninhado em seu ventre. De nada valia seu estrangeiro espanhol em território tzotsil.

Correu ao sabor do vento Tarahumara em direção ao centro da cidade, e desesperou-se ao perceber que os raios solares já se despediam, e não havia nenhuma cabine de informação turística aberta, delegacia de polícia ou qualquer outro lugar onde pudesse conseguir ajuda para encontrar sua pequena.

Perambulou durante toda a madrugada, na busca inútil por uma criança que mal conseguia descrever, pois a cada dia transfigurava-se, e não se deixava reconhecer pelos traços evidentes da carne. Sentiu-se sozinha e impura, com os pés descamados pelo excesso de caminhar, as costas frias pelos ventos noturnos que nada tinham de doces, e um vazio na alma que só os que perdem um amor sabem descrever.

Não pôde dormir pelo excesso de ausência que sentia sem sua menina para embaraçar-lhe os cabelos, atordoar-lhe com perguntas sem respostas, rir-se de seus medos. Acomodou-se como pôde sobre uma rocha gélida e escorregadia, e entregou-se ä observação do Belo, no céu pintado por estrelas da manhã e a Lua quase transparente.

Com os olhos cobertos de água, descobriu no céu três pontos de luz que se moviam como vaga-lumes em festa. E sua alma preencheu-se de revigorada alegria quando reencontrou a sua Teresa, transfigurada em luz na Serra de Chihuaua.

Chihuaua, 10 de setembro de 2006.

1 Comments:

At 7:05 AM, Anonymous Anonymous said...

Queria ser livre como as borboletas amarelas em panapaná ou as flores em tapete nos campos verdes e luminosos. Seus contos me inspiram. Te amo cada dia e sempre mais. Gu.

 

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