Monday, June 26, 2006

Olhos de Jabuticaba




Érica é a minha metade apartada que habita em solo mexicano. Grande olhos negros, desses que dão vontade de chupar feito jabuticaba; cabelos lisos, como os de sua mãe, índia de poucas palavras. A conheci, por providência, no Marrocos: como não usava sapatos adequados para o frio, após uma longa caminhada o sangue deixou de circular em meus pés. Tão envolvida estava admirando as belezas de Tanger, que só percebi que minha base estava paralisada quando a dormência chegou aos joelhos. Nesse momento de aflição, os olhos de jabuticaba perceberam meu desespero e me acudiram: enxugando minhas lágrimas e me apoiando em seus ombros, Érica conseguiu a proeza de descobrir um curandeiro no meio da madrugada e carregar-me até sua tenda. E como segundo gesto heróico, conseguiu fazer-se entender em espanhol em território lingüístico árabe.

Acordadas permanecemos nessa noite de aflição, admirando o Mediterrâneo que ameaçava invadir o Atlântico. Descobrimos que nascemos no mesmo ano, que sou apenas dois dias mais velha que ela, que escolhemos e exercemos a mesma profissão, que as histórias de nossos pais são similares, que somos fascinadas por poesia e história latino-americana, que temos várias identidades, que gostamos de voar livres mundo afora, mas que sempre fincamos raízes.

As ervas do curandeiro logo fizeram efeito. Não conseguimos nos despedir, tão admiradas que estávamos com a aborrecedora sucessão de coincidências. Assistimos ao nascer do Sol no Mediterrâneo, lambuzadas de cuscuz, embaladas pelo vinho, trocando juras de amizade eterna e promessas de lutar pela união da América.

Como tínhamos rotas distintas, despedi-me de seus grande olhos negros e acomodei no bolso um papelzinho com o telefone dela. Um ano mais tarde, deixaria o aeroporto internacional do Rio de Janeiro rumo à Cidade do México para unir-me a minha metade mexicana.

Érica repatriou minha metade exilada: comi tacos apimentados, aprendi a odiar o Fox, dancei ao som da marimba, enfrentei o metrô lotado, usei máscaras contra a poluição, chorei com os índios em Chiapas, arranjei um emprego de correspondente no jornal local, fiz amigos, ri com os episódios inéditos do Chaves, fiz promessa pra Virgem de Guadalupe, adquiri os olhos de jabuticaba, que se encharcaram na despedida...

E com os olhos de jabuticaba, tão ressequidos pela saudade da metade apartada, chorei a derrota do México para a Argentina por 2 a 1, nas eliminatórias dessa Copa. O meu sonho de ver a América unida me impede de torcer contra a Argentina, mas, no meu caso, há de se entender, é questão de meio-patriotismo...

Sunday, June 25, 2006

Telas

Preciso aprender a pintar com meu corpo, antes que a sexualidade me consuma. Escrevo com a cabeça tomada de impressões de corpos que vi planar, no espetáculo “Telas”, da companhia “Nós da Dança”.

Pena não ser capaz, no atual estado de imersão carnal no qual me encontro, de discorrer sobre os braços e pernas que retrataram com tanta sensibilidade Cézanne, Van Gogh, Munch, Picasso, Portinari e Pollock...

Perdoem o egoísmo, mas é inevitável: não consigo deixar de admirar meus braços, pernas, seios, bunda, coxas, costas, face, cabelos, ombros...quantas possibilidades meu corpo me reserva!


Quero que meus pés se arrastem pela tela branca, retratando formas e composições ainda não imaginadas; quero apreciar meus seios desenhando o real retorcido, meus braços alterando o hermetismo da natureza morta e a língua expressando o grito de Munch!

Preciso de uma tela branca e de um corpo menos corrompido.

Tudo o que é sólido...



Não tinha mais que 18 anos quando ouvi a frase atribuída ao velho Marx: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. Brotou da boca de uma das várias professoras, saudosistas da belle époque não vivida, que colecionei na faculdade de Comunicação.

Foi me dada a tarefa de dissertar sobre o devaneio. Lembro-me bem de que, diante da folha em branco, só conseguia pensar em cubos de gelo derretendo ao sabor do vento. Escrevi qualquer coisa sem paixão e guardei numa gaveta escondida do subconsciente.

Hoje, por uma dessas razões que a gente só descobre anos mais tarde, despertei com a frase atravessada na garganta. Sonhei ser um cubo de gelo, em processo de desmanche. Pingava consciente da minha liquidez. Que ironia! Há pouco mais de dois meses esnobava a solidez da minha vida: um emprego estável, um amor maduro, uma família equilibrada. E agora, tudo se volatilizou. E em meio a essa tormenta de desintegração, sinto-me perfeitamente gasosa, em estado de ebulição!

Não há solidez nas incertezas, nem nas angústias. Ora, e nem nos sonhos, que me aguardam, vaporosos, prontos para serem respirados!

Monday, June 19, 2006

Ecos





Muitas vozes falam em mim.

Sou estrangeira em meu próprio latifúndio.

Quem me deseja ouvir, nestas terras onde todos somos exilados?


Sou ruído que se esforça em exercício desinteressado.

Sussurrante de silêncios,

plena de asas e pétalas.

Thursday, June 15, 2006

O SANTO REBELDE



A Monalisa tentou me hipnotizar. Aquela mulher-homem de olhar penetrante me arrastou para dentro de uma livraria (antigo refúgio para a minha alma cansada dos ensurdecedores ruídos urbanos), ultrapassou a barreira do meu consciente, e me fez folhear o Código que, segundo dizem os amigos, os jornais, e, agora, o cinema, me revelaria segredos jamais imaginados sobre a Igreja onde professo minha fé.

Não gostei das poucas palavras que li. Provavelmente porque já não estava predisposta a gostar. Lembrei-me de como ruborizei logo nas primeiras páginas do “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do Saramago. Logo o Saramago, autor do “Ensaio sobre a Cegueira”, um dos três livros que quero levar comigo no caixão. Só consegui levar adiante a leitura graças a uma cartela de antiácido e ao talento que o escritor tem ao tecer palavras.

Mas a trama policial que tinha em mãos naquele momento em nada me seduzia: inexistia vínculo emocional com o autor, as palavras me pareciam cortadas e coladas ao acaso, e como agravante os olhos vorazes da capa insistiam na tentativa de hipnose. Larguei-o antes que fosse tarde, e fugi, atônita. Mas o olhar de Monalisa me perseguia: ele estava nos outdoors, nas bancas de jornais, nos letreiros dos grandes cinemas. Em meio à perseguição, senti pena dela: inerte, onipresente, solitária...Só então percebi que haviam globalizado a Monalisa.

Sentei-me por um instante, apreciando o outdoor como se estivesse no Louvre. Compadecida da pasteurização da obra de Da Vinci, me entreguei ao acaso, largada em um banco da orla da Zona Sul carioca. Não se passou muito tempo até que meu subconsciente, assustado com o estado de inércia ao qual meu espírito se entregara, me salvasse da angústia que ameaçava transbordar: lembrei-me de ter lido, em algum rodapé de jornal, a notícia de lançamento de um documentário sobre a vida de Dom Hélder Câmara. Batizado de “Santo Rebelde”, ainda que o filme não passasse de uma reprodução de pré-conceitos e críticas à Igreja Católica, só o fato de cometer a heresia de esnobar a Monalisa globalizada justificaria o ingresso.

Compartilhei a sala de cinema com mais seis hereges. Quatro deles de duas gerações à frente da minha. Ajeitei-me espaçosamente no banco, e esperei, com o escudo católico em mãos, pelos tapas de Erika Bauer, diretora do longa. Seguramente viriam críticas sobre a intervenção promíscua da Igreja Católica na política, sobre os instrumentos de coerção da instituição para controlar as massas, sobre as incoerências e os dogmas “absurdos” pregados por sacerdotes de caráter pouco admirável.

Fui surpreendida pelo vaivém da batina, levantando a poeira das periferias. Sandálias franciscanas que se arrastavam no chão esburacado, ao som de tambores africanos. A lama contaminada, pintando de marrom os pés do religioso, que saltava valas negras enquanto uma multidão de crianças se divertia, seguindo os passos do homem que rezava a missa “onde nenhum padre vai”. Ri, chorando, quando em incontido desabafo o religioso desabou: “Quando venho para essas áreas esquecidas e o povo miserável reza ‘o Senhor é meu pastor, nada me faltará`, me dói o coração. Olho ao redor e vejo que falta tudo, meu Deus!”.

A câmera de Bauer consegue captar com maestria a angústia do homem que ousou criticar o Capitalismo em tempos de Guerra Fria. Com sábia ironia, atordoava os jornalistas: “Se eu dou comida aos pobres, vocês me chamam de santo. Se eu pergunto porque os pobres não têm comida, vocês me chamam de comunista".

Cearense, de riso largo e olhar acolhedor, foi ordenado sacerdote aos 22 anos. Segundo conta com saudade exacerbada, seu pai, homem pouco afeiçoado às práticas religiosas, foi quem lhe estimulou a seguir a vocação “Meu filho, saiba que padre e egoísmo não combinam. Padre tem que se gastar”. No Rio de Janeiro, eleito bispo em 1952, descobriu que “vã é a fé sem ação”, e atreveu-se a renunciar ao egoísmo, semeando idéias “subversivas” no seio da Igreja Católica. “A Igreja não tem que ser assistencialista. Temos que pressionar os poderosos para que abram espaço para que os humildes se superem”.

Em 1956, fundou a Cruzada São Sebastião, canal de atendimento direto aos moradores das comunidades carentes cariocas. Três anos mais tarde, criou o Banco da Providência, para atender aos miseráveis. Enquanto as máquinas de Coca-Cola invadiam o território nacional, e o Tio Sam traçava um projeto desenvolvimentista para a América Latina, Hélder aventurava-se na loucura de lutar pela igualdade social. “Meus queridos, a única guerra legítima é aquela que se declara contra o subdesenvolvimento e a miséria".

Em 1964, a ditadura tentou fazê-lo calar-se, exilando-o em Olinda, onde foi eleito Arcebispo. Foi proibido de proclamar o Deus protetor dos oprimidos. Os militares assassinaram seus seguidores, que anunciavam nas periferias que todo pobre é vítima involuntária de relações injustas. “Se a fé é capaz de remover montanhas, não há de ser mais difícil revolver estruturas”. O nome do religioso que queria desestruturar a ordem foi impedido de ser impresso nos jornais, falado nas rádios e telejornais. Com um quê de vaidade, vangloriava-se da censura que o poder lhe impusera. Foi ao exterior proclamar que no Brasil as liberdades estavam ameaçadas, que o país estava sendo entregue em mãos norte-americanas, e que a miséria atingia índices alarmantes.

Foi ouvido, mas poucos o seguiram. Seu discurso rebelde não cabia nos limites do espaço ideológico estipulado pelos mais abastados e pelos doutores da Igreja, que se arrepiavam quando Hélder proclamava que “A vivência da fé cristã na América Latina supõe um posicionamento político em favor dos oprimidos”. Morreu antes de ver realizado seu sonho de exterminar a fome, e poder rezar o Pai Nosso sem sentir a consciência pesar. Mas deixou sementes de subversão no cerne do Vaticano. Desestruturou as bases, abrindo espaço para a prática de uma teologia calcada em aspirações libertadoras dos pobres, no exercício pleno do amor, pregando a alcançável utopia da igualdade.

Hélder me hipnotizou. Levou-me a um estado de transe, que mesclava a satisfação de ter reencontrado a razão de ser do Cristianismo e a euforia por constatar que a esperança me aguardava na porta do cinema.



NÃO SEI O QUE DIZER

Se eu pudesse
sairia derramando dinheiro
silenciosamente
nos bolsos dos pobres
caídos de cansaço e de fome
em bancos de jardins abandonados.
Se eu pudesse
sairia povoando de sono e de sonhos
as noites indormidas dos desesperados.
Se eu pudesse
- ah! se eu pudesse-
afugentaria da terra a desconfiança
que embacia os olhares mais claros
e torna turvos os horizontes mais limpos...
Não sei o que digo, Senhor!
Se deixas na terra
a pobreza, a insônia e a desconfiança
é porque elas traduzem uma mensagem
cifrada para os homens
e não entram por acaso
na vida de ninguém.

Dom Hélder Câmara.

Rio de Janeiro, 25/4/48.

CHIAPAS: CELEBRAÇÃO DA IGUALDADE - PARTE 3


Zinacatán

Caminhando sob o calor de 40 graus, saio de San Juan Chamula rumo à Zinacatán, ignorando as advertências dos guias locais que me avisam que a comunidade para a qual me dirijo é pouco receptiva. Barrancos e abismos se alternam ao longo do caminho. Imagino como deve ser difícil a locomoção em caso de chuva. Sinto sede, mas recuso-me a beber o único líquido não-alcoólico à venda no armazém local: Coca-cola. Junto-me a um grupo de jovens universitários mexicanos, que ali estavam, de passagem, para, segundo eles, aproveitar o momento de trégua e chegar mais perto dos “verdadeiros mexicanos”. Falam da formação de uma nova consciência política, com povos indígenas chegando ao poder, como quase aconteceu em 1994, com o apoio do Exército Zapatista de Liberação Nacional. Perguntam sobre como a elite brasileira está aceitando um governo comunista e me questionam sobre o destino do Movimento dos Sem-Terra. Mas antes que termine a primeira sentença, encobrem minha fala relembrando, com orgulho, a “Marcha dos 500 Anos de Resistência Indígena Popular”, realizada em 1992. Andrés, o mais silencioso deles, me surpreende: “Olhe para a serra: lá estão eles, os revolucionários. Agora olhe para mim: aqui está um revolucionário. Quando nascerem os meus filhos, antes mesmo de aprenderem a se comunicar, já serão revolucionários”. No caminho repenso sobre a sensível observação de Andrés, embora não me convença de que ele ou eu, por mais que ostentássemos raízes indígenas, fossemos revolucionários. Eles, os habitantes daquela terra, estavam sendo obrigados a lutar por serem incapazes de se adaptar ao sistema de propriedade privada. Nós, ao contrário, nos acomodamos.

O povoado de Zinacatán resplandece sobre os meus olhos, e antes mesmo de me aproximar da entrada do povoado, somos surpreendidos por dois homens, com facões nas mãos e pés descalços, que nos advertem, por meio de gestos, que a entrada não é permitida. Enquanto meus companheiros de viagem tentam, inutilmente, convencê-los de que não representamos nenhum perigo, aproveito para observar duas crianças que correm atrás de uma borboleta amarela. Recordo-me da imagem da borboleta, que, apesar da fragilidade aparente, é capaz de desatar uma tormenta. Uma voz, carregada de um sotaque espanhol bem peculiar, me lança de volta à realidade. Um mestiço vinha em nosso socorro: em troca de 25 pesos, o Indiana Jones da serra Lacandona, negociou a nossa entrada por 30 minutos, contados a partir do segundo que cruzássemos a cerca humana. Caso extrapolássemos o tempo, ele, o mestiço, e os vigias iriam nos buscar com facão em punho, sem se responsabilizarem pelos danos ocasionados (fizeram questão de frisar).

Radiantes, descemos morro abaixo como crianças em direção ao lago em dia de sol. Ao final do caminho de barro, descobrimos uma movimentada feira local. Nenhum dos moradores parecia estar surpreendido com a nossa presença. Não se aproximavam, nem nos ofereciam suas frutas ou leguminosas. Tentava disfarçar meu olhar de estrangeiro, mas a minha ânsia de tudo ver em poucos minutos me denunciava. Tentei comprar um zapote, uma fruta com aparência de pinha, só que com a baga preta e doce, mas meus metais foram recusados. Ali, fruta é trocada por farinha de milho ou qualquer outra riqueza que brote da terra.

Ao redor da feira, uma escola, um templo e algo que me pareceu um posto de saúde. Provavelmente se tratavam dos “caracoles”, os postos de atendimento à população criados pelo EZLN. Tentei me aproximar, mas a sensação de vigilância constante me intimidou. Pela primeira vez, desde que chegara em Chiapas, me sentia branca. Resolvi recuar, justo quando os trinta minutos que nos foram permitidos se esgotaram. Regressamos à San Cristóbal de Las Casas, com planos de na manhã seguinte partir em direção à Ocosingo, uma das comunidades marcadas pelo sangue dos guerrilheiros em 1994.

Ocosingo e San Miguel

De dentro da caminhonete a estrada parecia ainda mais estreita. Fechei os olhos para não enfrentar o abismo. Abri-os apenas quando o carro, enfim, parou. O motorista saltou e com ares de impaciência indisfarçável tentou negociar a nossa entrada em Ocosingo, com um grupo de índios estrategicamente posicionados na entrada do povoado. Os vigias balançaram a cabeça, em gesto negativo. Despeço-me em silêncio da comunidade, antes mesmo de conhecê-la. Meus companheiros de viagem resmungam, maldizendo a falta de sorte, e começam a especular o motivo pelo qual nossa entrada foi recusada. Segundo afirmam, os tzeltales não costumam destinar esse tratamento aos visitantes em tempos de paz.

Enquanto a caminhonete avança, em primeira marcha, pela estrada, observo as mulheres, que caminham, oscilantes, com redes e cinturões multicoloridos nas costas, e as crianças sobrecarregadas pelo peso de seus irmãos. Nosso destino é San Miguel, conhecida como a entrada da “selva dos zapatistas”. Meus companheiros de viagem estão inquietos e incrédulos. Como já haviam nos alarmado os mais pessimistas, ao chegar em nosso destino, somos impedidos de sair da caminhonete. Recuamos, consolados apenas pela bela paisagem. No caminho de volta, fui convencida de que algo estava prestes a acontecer no coração da Selva Lacandona.

A Nova Revolução

Seis meses após ter deixado aquelas terras, e quatro anos depois do governo mexicano ter negado o reconhecimento dos direitos e das culturas indígenas pactuados nos acordos de San Andrés, os membros das comunidades indígenas de Chiapas celebrariam, na noite do dia 15 de julho de 2005, uma nova etapa da luta iniciada em 1 de janeiro de 1994.

O alerta vermelho soou de 19 a 27 de julho na Serra Lacandona. Os zapatistas liderados por Marcos anunciaram na Sexta Declaração da Serra Lacandona que “durante quatro anos os zapatistas prepararam o terreno para apresentar ao seu povo portas e janelas para que, chegado o momento, todos pudessem escolher qual janela atravessariam e qual porta abririam”.

Surpreendentemente, anunciaram ainda a ampliação de seus objetivos: “Seguir luchando por los pueblos indios, pero ya no sólo por ellos ni sólo con ellos, sino por todos los explotados y desposeídos, con todos ellos y en todo el país” (“seguir lutando pelos povos indígenas, mas não por eles e nem só com eles, mas também por todos os explorados e todos aqueles que não tem posse, com todos eles e em todo o país”). Dentre os países incluídos no plano mundial zapatista está o Brasil, com quem Marcos pretende estabelecer “relações de respeito e apoios mútuos”. Cuba, Chile, Venezuela, Argentina, Uruguai, Equador e Bolívia também são citados na Declaração, que aborda ainda o estabelecimento de alianças e realização de encontros intercontinentais com a Europa, África, Ásia e Oceania.

Segundo documentos divulgados pelos revolucionários, a estrutura interna do EZLN está agora subdivida em três partes. A primeira delas é o “Comité Clandestino Revolucionario Indígena”, voltado à defesa e orientação dos povos zapatistas. A segunda subdivisão intitula-se “Comisión Intergaláctica del EZLN”, criada para atender aos objetivos internacionais estabelecidos pela Sexta Declaração da Selva Lacandona. E, finalmente, a “Comisión Sexta del EZLN” encarregada de atender as ações de ordem nacional.

Buscam eles - tzeltales, tzotziles, choles e tojolabales - uma nova forma de fazer política e uma nova Constituição. O sonho, pretensioso, é um sopro de esperança, propagado por vozes “teimosamente vivas que nos anunciam outro mundo que não seja este, envenenador da água, do solo, do ar e da alma. Também nos anunciam outro mundo possível as vozes antigas que nos falam da comunidade. A comunidade, o modo comunitário de produção de vida, é a mais remota tradição das Américas, a mais americana de todas: pertence aos primeiros tempos e às primeiras pessoas, mas pertence também aos tempos que vêm e pressentem um Mundo Novo” .



CHIAPAS: CELEBRAÇÃO DA IGUALDADE - PARTE 2


San Juan Chamula

Ao redor de San Cristóbal de Las Casas, uma formação montanhosa de um verde opaco. As indígenas, com suas crianças envoltas na cintura, caminham em direção à densa estrada de terra seca. A poeira encobre os corpos cansados, e uma cerca de bambus e folhas ressecadas demarca o território. Um pedaço de papelão manuscrito avisa: “Bienvenido a San Juan Chamula”.

Os pastos queimados pelo sol e as dezenas de criancas mendingando pelas ruas de terra batida avisam que a época da colheita está distante. Os programas educacionais mantidos pelo governo mexicano começam justamente quando os pastos estão transbordando de grãos, e, curiosamente, as férias são decretadas quando já não há mais trabalho por fazer nos campos. Resultado: 87% da população local é analfabeta.

No interior das casas de pau-a-pique, crianças carregando outras crianças nas costas, ajudam a alimentar as ovelhas, cuja lã é a unica proteção para o frio, que chega a atingir cinco graus negativos nas noites mais gélidas. Por isso as ovelhas, que podem ser encontradas nos mais remotos cantos do povoado, são poupadas do sacrificio. Há quem pense que há ainda outro motivo por essa proteção: São João, padroeiro da comunidade, tem, a seus pés, na imagem difundida pela Igreja Católica, uma ovelha.

A brisa seca de San Juan Chamula e o solo árido exalam espiritualidade. Desde as verdes cruzes (decoradas com folhas misteriosamente verdes, apesar do sol), até o templo maia de fachada católica, passando pelo cemitério adornado com fitas coloridas e em cujo centro encontra-se uma igreja católica consumida pelo fogo, os sinais do fervor religioso dos tzotziles emanam no ar. Passados cinco séculos da ocidentalização das tradições indígenas, é árdua a tarefa de distinguir que elementos são autênticos e quais foram adotados dos brancos.

Seus joelhos se dobram diante da Cruz Maia, símbolo da criação do mundo, que aconteceu em 3014 a.C., quando céu e terra se encontraram. De acordo com a fé maia, aos doze dias de dezembro do ano de 2012, o fenômeno se repetirá. Seus joelhos se dobram também diante dos santos da igreja católica, e da Virgem de Guadalupe, “a nova mãe” dos tzotziles – a primeira mãe é a natureza.

Sustentando bebês nas costas, garrafas de refrigerantes e velas nas mãos, as mulheres adentram a igreja de fachada verde e branca, adornada com fitas multicoloridas. Para entrar é preciso permissão do líder comunitário local que, após receber 20 pesos e checar se o visitante porta máquina fotográfica (é terminantemente proibido tirar fotos na serra, pois, segundo os guias, os povos indígenas crêem que o equipamento capta a alma humana), nos encaminha ao interior do templo.

Nenhum banco. Chão coberto de palha, folhas e velas (centenas delas), santos com braços amputados. Aves sacrificadas, choro de criança, músicas natalinas intermitentes tocadas por uma caixinha de música consumida pelo tempo. Apesar do aparente alvoroço, no interior do templo o semblante calmo dos indígenas, executando, com maestria, seus rituais, é confortante. O sangue de uma ave asfixiada é derramado sobre a cabeça de um bebê, enquanto um curandeiro joga refrigerante (substituto do tradicional vinho indígena, em função do encarecimento do produto e da ampla oferta de Coca-Cola no local) sobre as velas ofertadas pela saúde da criança.

O tamanho das velas e o número delas varia de acordo com o poder aquisitivo da família que está executando o ritual. Ao caminhar pelo interior do templo, onde ao centro esbarramos com a imagem de São João e sua ovelha, é preciso ter cuidado para não esbarrar em velas com quase um metro de altura, ou para não apagar a chama de outra que mal alcança a altura de um dedo indicador. As marcas de fogo nas paredes denunciam o prenúncio do desastre, a exemplo do que aconteceu com o templo católico incendiado, hoje localizado no centro do cemitério local. Aliás, os santos cujos membros superiores foram amputados pertenciam à igreja católica incendiada: indignados com o incêndio que destruiu o templo, os tzotziles impuseram esta punição aos santos, por não haverem impedido a tragédia.

Diante do templo maia, mulheres ofertam casacos de lã recém-cosidos, enquanto os seus se protegem da violência do sol com trajes herdados de gerações passadas. O silêncio é inquietante, rompido apenas pelo alvoroço das crianças. A comunicação com as vendedoras se faz pelos sinais. A essa altura entendo o por quê do misticismo que envolve os guias locais, em sua grande maioria mestiços, revestidos de um “poder bilíngüe”, que lhes confere o respeito das mulheres e a simpatia das crianças. Basta qualquer ameaça de tentativa de comunicação com os tzotziles, para que um deles, com trajes em muito semelhante aos do hollywoodiano Indiana Jones, se aproxime e se coloque na posição de tradutor, sem esperar nenhuma recompensa além de uma expressão de surpresa do estrangeiro pela excentricidade do dom do mestiço de falar o dialeto local. Com a visão
prejudicada pela intensidade dos raios solares, diversas vezes tive a sensação de que eles, indígenas e mestiços, e a terra, árida, eram um só. Uma chama quase imperceptível parecia fazer o solo estalar, como um grito contido.

Os homens evitam um contato mais próximo. Caminham a passos largos e logo desaparecem na serra. Alguns cobrem o rosto, deixando à mostra apenas os olhos, que revelam a angústia daqueles que já estão cansados de esperar e a maturidade de quem aprendeu que para o governo é mais fácil cumprir uma ameaça que uma promessa.

Aquelas terras, até meados da década de 70, pertenciam aos camponeses, que cultivavam cana, café e milho. Nos anos 70, contudo, Chiapas se converteu em um grande produtor de eletricidade e de petróleo, e parte da população optou por vender sua força de trabalho aos donos das refinarias. Os tzeltales, tzotziles, choles, zoques, tojolobales e mestiços resistiram, e, permanecendo na selva, se uniram e formaram a Associação Rural de Interesse Coletivo União de Uniões (ARIC U de U), para defender seu espaço, cada vez mais disputado por madeireiros e políticos. Ainda em meados dos anos 70, líderes estudantis sobreviventes do movimento de 1968, contrários ao autoritarismo e à repressão do governo mexicano, começaram a chegar a Chiapas para auxiliar na organização das comunidades indígenas, elaborando programas de lutas por terras, escolas e hospitais. Desenvolveram um sistema de "assembléias itinerantes", que permitiu a maior integração entre as comunidades, diminuindo a distância provocada pelas barreiras lingüísticas e religiosas.

Em 1971, por decreto presidencial, as terras foram entregues à etnia dos lacandones, sob o pretexto de preservar o território ainda fértil e proteger esta etnia, que estava em vias de extinção. Por trás da ação governamental, havia, na verdade, negociações com madeireiros. As comunidades organizadas dos tzotziles, tzeltales, choles, tojolobales e zoques não aceitaram o desalojamento e a proposta de assentamento em terras inférteis. Enfrentaram o governo, se recusando a entregar sua autonomia e a Selva Lacandona aos madeireiros em troca de pequenas concessões. Os conflitos agrários com o Estado se acentuaram. Em princípios dos anos 80, 400 latifúndios foram invadidos. A maior parte dos sobreviventes, foi expulsa pelo governo. 70 mil indígenas solicitaram a permanências nas terras ao Departamento Agrário. Não foram atendidos.

CHIAPAS: CELEBRAÇÃO DA IGUALDADE - PARTE 1



Doze horas do Distrito Federal até a capital do oitavo maior estado do México: Tuxtla Gutierrez, Chiapas. À primeira vista, não há nada que a distinga das demais províncias. Ou melhor, quase nada. Não fossem as camisetas de Che Guevara e do subcomandante Marcos, líder do Exército Zapatista de Liberação Nacional, dispostas sem pudor nas vitrines de lojas para turistas, a riqueza de simbolismos da capital poderia passar desapercebida ante olhares mais desatentos.

O mercado municipal, onde as “chiapanecas” – comerciantes que preservam em seus trajes as tradições indígenas – convidam os visitantes a desfrutar os típicos tamales chiapanecos (uma espécie de pamonha apimentada) e os caldos, igualmente caprichados com “chile”, é um convite a uma experiência sensorial das mais enriquecedoras. A mistura de aromas exalados pelos grãos multicoloridos, milho cozido, peixe, ervas, café e licuados (leite com frutas) e o corre-corre das crianças trajando seus gabanes, concedem ao local uma atmosfera mágica.

O centro da cidade, absolutamente urbanizado, é demarcado por uma igreja (a Catedral de São Marcos), e o coreto, onde todas as noites se realizam danças e concertos ao ar livre ao som da marimba, um ritmo da Guatemala, em muito semelhante à salsa. Aliás, o estado de Chiapas, banhado pelo Oceano Pacífico, faz, ao sul, fronteira com a República da Guatemala – daí o inevitável sincretismo cultural.

Mas o cartão postal do estado não está na capital, e sim na simpática Chiapa de Corzo, localizada a 20 minutos de Tuxtla Gutierrez. O Cañón del Sumidero, decretado parque nacional em 1980, abriga espécies vegetais e animais das mais variadas, e não é difícil encontrar durante as duas horas de trajeto de lancha (a 100 pesos por pessoa), crocodilos e serpentes sobre as rochas, que chegam a alcançar mil metros de altura. Na época da invasão espanhola, El Cañón foi palco de árduas batalhas entre índios e espanhóis. Diante da inevitável escravidão, conta a história que uma aldeia inteira se lançou ao mar. Hoje, o espetáculo é revivido (sem o dramático desfecho, obviamente) do alto das rochas por atores locais, para deslumbramento de turistas.

Aos 20 dias de janeiro, por ocasião da celebração do dia de São Sebastião, a população sai às ruas, com trajes coloridos, flores, fogos de artifício, e, quase oculto pelo som dos apitos e o alvoroço das danças, a imagem do patrono, carregada por meninas bem-maquiadas, no interior de uma carruagem, desde onde são lançadas balas e colheres para o povo em festa. Após a procissão, os “parachicos” (meninos mascarados), se aglomeram para saltar e cantar ao redor da imagem do santo. A herança das tradições maias não poderia ser mais evidente.

San Cristóbal de Las Casas

Seguindo a trilha das camisetas dos revolucionários e dos campos devastados pela ação das madeireiras, chega-se a San Cristóbal de Las Casas, a duas horas da capital. O ar seco e o sol rachante, apesar do frio, denunciam a proximidade com a serra. Avançando pelas ruas estreitas, compostas por pedras e casas coloniais bem conservadas, encontra-se o Palácio Municipal, onde, em 1 de janeiro de 1994, os índios (tzotzil, tzeltal, tojolabal, zoque e chole), liderados por um professor universitário que abraçou a causa indigena e que por 12 anos esteve construindo, na serra de Chiapas, o núcleo do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), o subcomandante Marcos, iniciaram uma rebelião armada com o intuito de obter autonomia e direitos constitucionais que lhe assegurassem a propriedade coletiva das terras indígenas.

Os zapatistas chegaram a ocupar toda a cidade de San Cristóbal, bem como as cidades vizinhas de Las Margaritas, Altamirano e Ocosingo. A conquista lhes custou 600 homens. Após a matança, o governo mexicano, pressionado pela opinião pública, decretou cessar-fogo, no mesmo dia em que se firmara o Tratado de Livre Comércio entre México e Estados Unidos.

Onze anos mais tarde, crianças e mulheres indígenas miseráveis rodeiam o Palácio e a catedral da cidade, construída logo após a chegada dos espanhóis, em 1528, tentando vender peças de artesanato, e, principalmente, chaveiros do subcomandante Marcos, paliacates e pasa-montanas (lenços e gorros utilizados pelos integrantes do EZLN).