Thursday, August 31, 2006

ELEIÇÕES III - Teresa e o lugar do Bem



- Dolores, por que quando você reza você olha para baixo? Deus não tá lá no céu, lá no alto?

- O Bem não está no alto, Teresa. Está aqui embaixo, entre nós.

- E por que então que todo mundo diz que Deus tá lá pra cima? Embaixo não fica o inferno?

- Ah, minha pequena, faz parte da lógica da nossa sociedade fazer com que a gente acredite que o Bem está lá no alto, no topo da pirâmide, e o Mal aqui em baixo, com os fracos.

- Fazem isso pra gente achar que só porque eles tão lá em cima eles são deuses e podem mandar na gente, Dolores?

- Você me comove, menina...

- Mas se alguém daqui de baixo subir a pirâmide e chegar lá no topo, onde está o Mal, esse alguém não devia continuar do lado dos que estão em baixo, os do Bem?

- Devia, Teresa. Mas isso nem sempre acontece. Como naquela história que te contei...

- Ah, já sei, já sei! A história do torneiro mecânico que virou presidente! O Mal engoliu ele, não foi, Dolores?

- Sim, meu amor. Infelizmente.

- Então não adianta nada subir a pirâmide...

- Não, Teresa, claro que adianta! Se todos nós, os fortes daqui de baixo, tentarmos subir a pirâmide, quando chegarmos lá, vai pesar tanto, tanto, tanto, que ela pode acabar desabando. E então ficaremos todos no mesmo plano, num mundo de igualdade, sem pirâmides.




Wednesday, August 30, 2006

ELEIÇÕES II


Pra ser sincera, aliás, pra ser sincera não, detesto esta expressão. Nada contra a sinceridade, mas é que ao utilizá-la fica parecendo que todas as vezes que não a utilizei não fui sincera. Cria uma espécie de escravidão escrita, e escravidão, seja de que natureza for, é sempre uma merda. Mas como ia dizendo, ou melhor, escrevendo, eu sinto falta de toda aquela porcalhada que emporcalhava, ficou redundante, eu sei, mas quis usar esse recurso de propósito para enfatizar a porcaria, que os porcos não se ofendam, adoro porco assado com batatas, mas então, como dizia eu, sinto falta daquelas porcarias de papéis vagabundos que voavam como pombos pelas ruas na época das eleições.

Tenho saudades também dos postes enfeitados com rostinhos feios e sorridentes. Aliás, do que riem os candidatos a qualquer coisa? Se me candidatasse a qualquer coisa, adoro essas palavras que não querem dizer coisa alguma, como coisa, eu jamais sobreviveria nem por um dia em redação de jornal, então, se me candidatasse à vereadora, deputada, presidenta, isso, presidenta, porque presidente é machismo, eu exibiria uma cara triste para a câmera. Ou melhor, triste não, eu abriria o berreiro, acho que marqueteiramente funcionaria.

Acabaram com os rostos nos postes, acabaram mesmo, como sujeito indefinido, pois foi a lei que acabou com a alegre porcalhada que emporcalhava as ruas em época de eleições, mas lei não pode ser agente, nem o Estado, por isso esse lance de instituição funciona tão bem, porque quem faz fica sempre indefinido, e a gente, nós, os fudidos, não temos com quem reclamar. Agora o que temos são postes ambulantes, essa gente fudida que fica prostrada no meio do tráfego.

Outro dia vi um poste de setenta e poucos anos, segurando uma carinha sorridente. O olhar do poste me chamou a atenção, e fui até ele, sem saber direito pra quê, aliás, eu nunca sei o para quê das coisas, e descobri que o poste estava feliz por ser poste, porque antes de ser poste não servia para coisa alguma, e agora, veja você, disseram, isso, disseram mesmo, no indefinido, que o poste voltou a ter utilidade, e então o poste ficou feliz de poder ser útil para alguma coisa. Depois de falar com o poste, no caminho de volta não lembro mais pra onde, eu nunca sei em que direção estou indo, mas então, no caminho de volta, passei a observar com mais curiosidade os postes e percebi que só haviam postes velhos, já desgastados pelo uso.

Os mais novos, com braços fortes e falantes, eram porta-bandeiras. Sacudiam pra lá e pra cá os rostinhos feios e sorridentes, rodopiando entre os carros, como se estivessem na Sapucaí, que é o lugar onde nós, os cariocas, os que são cidadãos e os que não são, brincamos de ser feliz, sambando, numa festa pagã que a gente, assim, no indefinido, porque eu não sei quem deu, perdão pela ignorância, deu o nome de Carnaval.

Então, como dizia, vendo os porta-bandeira de dentro do ônibus, eu achei que era Carnaval, e me deu uma puta vontade de sambar com eles, ali, no meio da pista, mas eu não desci, porque para ser porta-bandeira, pensei, você precisa de uma bandeira, é lógico, e eu ainda não tenho a minha. Aliás, eu até tenho, mas não ando com muita vontade de sair ostentando ela por aí, quer dizer, não é nem falta de vontade, é fraqueza nos braços.

Sei, sei, deveria ter vergonha disso, dessa preguiça involuntária, mas esse lance de democracia é muito trabalhoso, acho que só os muito fudidos estão preparados para ela, tem os braços preparados de tanto virar laje, ah, claro, e de segurar bandeira na Sapucaí, porque ninguém é de ferro, nem os muito fudidos. E então me convenci, no caminho de volta para não me lembro onde, que precisava me fuder um pouco mais, pra deixar de ser tão preguiçosa, deixar de perder tempo com as tolices escritas. Mas depois, antes mesmo de chegar não sei onde, voltei atrás, e resolvi que escreveria só mais uma, umazinha só, tolice escrita, e depois, num futuro próximo, me redimiria.
(Para o João, poste eleitoral)

Monday, August 28, 2006

Rosa Mexicana


Quando te encontrei prostrado sobre a cama, tão solto, indiferente ao Sol da manhã de Domingo, lembrei-me de Neruda: “Para meu coração basta teu peito / para tua liberdade bastam minhas asas./ Desde minha boca chegará até o céu / o que estava dormindo sobre tua alma”.

Parei por instantes a contemplar teu sono, povoada de vozes nostálgicas, admirada com os passarinhos que sobre teu corpo sobrevoavam.

Detive-me sobre suas cicatrizes, procurando marcas de teu presente, pois teu passado é para mim surdo silêncio, que só a ti pertence.

Beijo a beijo fui ocupando teu corpo, precipitando-me sobre a amplitude de teus braços, sobre o vão de tuas pernas, sobre a beleza de teus traços e a fortaleza do teu sexo.

Deslizei sobre ti como bailarina alucinada, desintegrando-me sobre tua carne, sem temer a queda que se sucede aos grandes saltos.

Voei solta sobre ti, ferindo minhas asas entre teus espinhos, cravando-me inocente em cada riso teu, perdendo-me uma e um milhão de vezes em teu peito.

Encontrei em teu corpo a argila, restos vivos das noites em comum, quando moldamos nossas fantasias para melhor enfrentar os dias de realidade.

Ensurdeci-te com as histórias de minha vida, e te ocultaste, como irmão das coisas fugidias.

Exposta a tua correnteza, recolhi-me a minha própria natureza, entregue aos teus silêncios, esperando que de teus lábios efêmeros brotassem pétalas verbais que mortificassem meu espírito.

Mas de ti vieram cinzas, carregadas de areia de teu jardim, e nas ondas de teus versos rudes, lancei minhas pétalas, procurando entre teus lençóis os sinais dos teus caminhos.

Desfolhaste-me até teus braços caírem, exaustos. Mas permaneci intacta, infinita, deixando sobre ti o pólen de minhas saudades.

Anunciei que voaria para uma terra prometida onde índios clamam por liberdade.

Me exilaria de teu corpo, de teus vinhos, de tua poesia. Levaria em minhas asas a leveza da tua existência e as marcas dos teus espinhos.


Thursday, August 24, 2006

Dolores está de malas prontas...


...para a Cidade do México. Vai se entregar, uma vez mais, às garras do “monstro”, como bem definem os zapatistas.

Cismou que tinha que voltar à Chiapas, com a nobre missão de aprender a linguagem para decifrar os comunicados do EZLN e cuidar da carne do companheiro subcomandante insurgente Marcos, que, como todo revolucionário combatente, deve andar muito carente de um colo feminino.

Tentei persuadí-la para que ficasse, que Marcos sobreviverá sem ela, que sua presença perturbará a paz da Selva Lancadona, que as índias certamente vão expulsá-la da aldeia quando ela cismar em dançar nua, no meio do círculo formado pelos companheiros índios, depois de beber duas tequilas.

Mas quando Dolores inventa uma missão, não há Cristo, Maomé, Kokopelli, Fidel Castro ou Hugo Chávez que a convença do contrário. Sendo assim, só restou a mim arranjar um emprego num jornal no centro do “monstro” para sustentar os vícios de Dolores e emprestar meu corpo para que ela chegue até onde sua cabeça já está.

Que a Virgem de Guadalupe nos proteja!

Wednesday, August 23, 2006

ELEIÇÕES


O dia de amanhã está sendo cozido,
na panela vazia da mãe de sete famintos
no forno de cinzas das vítimas da desesperança
que já não sabem o que esperar

Mas há quem ainda teime em cozinhar
ainda que falte a água para ferver
ainda que escasseiem os grãos para inchar

Baterão à porta dos famintos
convocando-os para lutar
para que não mais esperem
pelo que já não podem esperar

Friday, August 18, 2006

Teresa e o peso das coisas



- Dolores, por que as coisas caem?

- Caem porque tem peso, Teresa.

- E tudo o que cai, cai pra baixo?

- Não, querida, nem tudo.

- Então você não acredita na gravidade, Dolores?

- Acredito, minha pequena, mas a gravidade é um conceito incompleto. Todo corpo é atraído para o lugar que lhe é próprio, querida, e nem sempre esse lugar fica no chão.

- Então é por isso que o fogo pesa pra cima?

- Isso, minha menina. O fogo procura o ar, e por isso é atraído para o alto.

- Ah! Então é por isso também que o azeite flutua sobre a água!

- Isso mesmo, Teresa! Como acontece com o fogo e o ar, o azeite, quando se choca com a água, é atraído em direção ao seu posto de submersão.

- E para que lado você pesa, Dolores?

- Todo ser humano pesa para baixo e para cima, meu amor. Alguns passam mais tempo em cima, outros mais em baixo, mas todos são constantemente arrebatados para cima e para baixo.

- Cruz credo! E os humanos não ficam enjoados não, Dolores, de tanto chacoalhar?

- Ficam sim, meu anjo. E a esse enjôo, de instabilidade e inconstância, o homem deu o nome de angústia.

Monday, August 14, 2006

Íntimos Desconhecidos ou "Dos monedas por tu placer"


Alguns ébrios têm o hábito de exagerar no sal para aumentar a sensação de prazer ao matar a sede com o álcool. Seguindo essa mesma lógica, ela permitia-se abusar das fantasias. Revivia em sua memória, incessantemente, o último ato daquela batalha, que tanto prazer lhe concedera. A crueza do toque, o odor de luxúria, a saliva suja dos detritos da carne, as canções latinas e as palavras vis ocupando o espaço-tempo do habitat dele.

Ao recordar as delícias daquela noite, gargalhou, em horas impróprias, nos dias que se seguiram, levantando suspeitas quanto a sua sanidade mental. Sentia-se como a pequena Alice da fábula, cujo mundo de fantasias se abria a qualquer instante, em qualquer lugar, bastando para tal evocar o nome dele. Em seus sonhos ele permitia-se ser tão tangível, que por muitas vezes, ao abusar do sal de fantasias, duvidara da existência real do homem que lhe deixara com hipertensão.

De fato, ele não fazia parte da dimensão de sua realidade cotidiana. Pouco ou nada sabia do dia-a-dia daquele homem, que, por sua vez, nem imaginava que mistérios reais ela escondia. Eram íntimos desconhecidos, vivendo em freqüente estado de ebulição em um universo paralelo. Não eram mais que fragmentos de fantasia que se encaixavam harmonicamente no subconsciente, preenchendo as lacunas mútuas. Que vazio ela estaria preenchendo? Ele lhe servia para o exercício cotidiano da poesia, para aplainar sua alma e...

- Estoy harta de tu rasa filosofía, mujer! Permítame escribir la historia de mi vida, pues tu poesía mata la verdad!


“Durante cuatro días sentí en mis genitalillas la dureza de la última batalla. Odié a aquél hijo de puta todas las veces que pensaba en sentarme. Pero después de curarme del ataque violento del predador, sentí ganas de volver inmediatamente para aquellos brazos, para hacerlo, una vez más, esclavo de mis peores deseos.

Sin embargo, el desgraciado se mantuvo lejos de mi veneno y se escondió durante diez días. Tuve que contentarme con mis manos durante siete días seguidos para no transbordar con mi río interior de lujuria. Finalmente, en la décima noche, él me llamó, con ganas de poseerme pronto.

Dominada por la rabia provocada por la longa espera, elegí las palabras cómo una artesana, y ejercité toda mi retórica para tenerlo dominado del otro lado de la línea telefónica. Y cómo un insecto preso a la lengua de la rana, él se entregó totalmente y gozó con fervor. Estaba dispuesta a hacerlo pagar con todas las monedas de su cuerpo por los daños que provocara en mi alma, ya que me ha obligado a esperar más tiempo que me intenso deseo de amante era capaz de soportar.

En el día siguiente, invadí su espacio, totalmente desnuda. Envolví sus ojos con un tejido negro, para que no pudiera defenderse de mi ataque. Bailé sobre su cuerpo cómo una culebra delante de un ratón. Le conduje hacia la pared, para ser poseída por él con toda la intensidad que mis entrañas podrían aguantar.

Mientras se ocupaba del ejercicio frenético de salir y entrar, entrar y salir, rellenaba mi mente de fantasías, imaginando hasta donde mi estimado experimento sería capaz de conducirme. Con todo aquel conocimiento, él tenía el deber de regalarme sensaciones que yo jamás había experimentado, pues ya había desvendado lo suficiente de mi carne para poseerla y hacerla ultrapasar sus límites.

Cómo una niña desprotegida, me entregué una vez más en aquel pecho, extasiada por el vino y por las fantasías. Me perdí en un gozo profundo, ultrapasando mis límites carnales, suavemente conducida por las manos de él. Con total conciencia de su poder, él me expulsó, con cordialidad, de su espacio, luego que reconquisté los sentidos. Ignorando mis reclames rabiosos, me invitó a salir de su hábitat, para volver al mundo real, donde Dolores es solamente un personaje de un cuento erótico”.

Dolores de Los Ángeles

Tuesday, August 08, 2006

ESTAMIRA

Após uma semana vazia de poesias, encontrei-me com Estamira. Antes de ouvir o que ela tinha a dizer, chorei todas as minhas dores em seu olhar. Eu, menina branca, de classe média, operária do saber, confessei-lhe minhas misérias, a dor de estar perdida em meio às obrigações cotidianas, sem espaço para fantasiar, sem tempo para sentir. Ouviu-me com doçura e benevolência, e nos cento e vinte minutos seguintes contou-me sua história.

Há vinte anos trabalhando no aterro sanitário de Jardim Gramacho, entre abutres e toneladas de lixo, esta mulher de 63 anos e sabedoria milenar, redescobriu a natureza do bicho homem, ou “os sanguíneos”, como prefere categorizar. Totalmente desacreditada da vida, após duas traições conjugais, dois estupros, e a fome, ela revela que “transbordou para ficar invisível”. O que os doutores (que tudo copiam) chamam de esquizofrenia, Estamira - que “Está aqui, está lá, está em todo lugar” – define como “o além do além, onde tudo é transbordo”.

Com absoluta sanidade, confessa que “vive nesse mundo, para se defender da realidade”, e responde com clara firmeza aos filhos que tentam convencê-la de que a vida no sanatório é a melhor opção: “Eu sou perturbada sim, mas eu sei distinguir o que é perturbação e o que não é”.

Estamira blasfema contra o Deus doutrinário, inventado pelos “sanguíneos”, ao mesmo tempo em que declara um amor verdadeiro, transbordante, ao “Deus que ela vê com lucidez”. “Deus, como sou lúcida!”, alegra-se, encantada com a tempestade que despenca sobre o lixão, transformando os restos de alimento podre em um rio ácido e borbulhante de poluentes.

Plena de esperança refletida nos olhos ressequidos, profetiza: “Eu acredito no comunismo superior”. Rica e exultante, dançando entre urubus esfomeados, compadeceu-se da minha miserável condição de escrava: “Trabalhar não tem que ser sacrifício. Eu não vivo por dinheiro. Eu que faço o dinheiro”.

Enquanto o Sol lilás se deita sobre as montanhas de lixo ao final da tarde, Estamira transborda de beleza, atraindo os apaixonados Pinguelo e João, seus companheiros na arte de “catar descuidos”. Os três, libertos das ilusões do mundo real, alcançam a dimensão da invisibilidade, e exclamam, com absoluta verdade, que “tudo o que é imaginário existe, e tem e é”.

(Para Sílvia, por compartilhar)

Friday, August 04, 2006

Teresa e os sentidos


- Dolores, como é que o mar pode caber inteirinho dentro da minha cabeça?

- Não é o mar que cabe dentro da sua cabeça, minha pequena Teresa. São as imagens que ficaram guardadas das vezes que você viu o mar.

- Não é não, Dolores! É o mar mesmo! Quando eu fecho os olhos, eu ouço o barulho das ondas batendo nas pedras; sinto o cheiro de peixe e o gosto de sal na minha boca. E, se eu pensar com muita, muita vontade mesmo, eu até consigo sentir a água batendo nos meus pés.

- Tudo isso é a sua memória, querida. A memória é uma caixinha que fica dentro da cabeça, feita para captar todos os sentidos. Pelo sentido da visão, você deixou entrar em você a imagem do mar. Pela audição, entraram o som das ondas; pelo olfato, o cheiro do peixe; pelo paladar, o gosto do sal. E pelo tato, a sensação de estar molhada, minha pequena.

- Então tudo que está dentro de mim entrou pelos sentidos, Dolores?

- Sim, Teresa. O ser humano é como uma grande caixa vazia, que ao longo da vida vai se preenchendo de coisas que entram pelo nariz, pela boca, pelos olhos e pelo toque.

- Hum...não sei não Dolores. Eu nunca ouvi, nem cheirei, nem saboreei, nem apalpei a esperança, e mesmo assim ela tá aqui dentro, ó! Por onde foi então que ela entrou, Dolores? Por onde?

- Não sei, querida. Não tenho respostas para tudo.

- Vai ver, Dolores, ela sempre esteve aqui dentro, e por isso nem precisou entrar. Vai ver a gente já nasce com uns pedacinhos de esperança, pedacinhos de piedade, pedacinhos de beleza, que ficam escondidos lá no fundo da caixa, e a gente só descobre quando tapa os ouvidos, fecha os olhos, guarda a língua e não toca em nada.

Thursday, August 03, 2006

ANJOS


Dolores tem dois anjos. O primeiro herdou dela a pele alva e a boca farta. E também o temperamento tempestivo, intercalado com rompantes de mansidão sem fim.

Recebeu da mãe um nome esquisito, escolhido, tal qual jogo de azar, do velho Atlas Geográfico Universal, esquecido durante duas décadas na caixa de livros usados de Dolores. Depois a mãe implicou com a inicial, resolveu trocar o “i” por “y”, e, como se não bastasse a confusão alfabética, encaixou um “A” na frente, para o que menino pudesse ser “o primeiro em tudo”.

Assim nasceu Ayslã, que por força das paixões de sua mãe, foi levado, desde a primeira semana de vida, ao exílio, numa terra que vive sob as dores do tráfico. O primeiro anjo de Dolores, logo que aprendeu a falar, descobriu-se diferente dos demais querubins de sua terra. Ele era o único de pele branca; o único a estudar em escola privada; o único a comemorar os anos; o único apadrinhado por Dolores, que o cobre de presentes e vem de uma terra desde onde é possível ver o mar.

Consciente de sua excepcional realeza, o primeiro anjo de Dolores descobriu, mui precocemente, o mal da vaidade. Mas como não encontrasse outros príncipes em seu reinado para o exercício dos jogos de infância, Ayslã também foi obrigado a aprender a ser gentil e a compartilhar bolas e super-heróis com os filhos menos afortunados do exílio.

O segundo anjo de Dolores nasceu exatamente um ano depois do primeiro, por força dessas conspirações do Universo que a lógica humana não alcança. Foi gerado pela fusão de dois corpos germinantes, transbordantes de utopia.

Os pais lhe batizaram com nome de santo. Desde as primeiras horas de vida do rebento, o defenderam, com unhas e dentes, dos apelidos que terceiros, indiferentes à importância de dar significado a um novo ser, insistiam em criar. “O nome dele é Antônio. Não é Tonico, nem Tonho, nem Toninho”, bradavam eles.

O segundo anjo de Dolores viveu a primeira fase da infância gozando da impertinente, e por vezes opressora, companhia dos adultos. Como estratégia de sobrevivência, o pequeno logo aprendeu a ser independente, e aprimorou-se na arte de fazer cumprir a sua vontade.

Antônio ignora com veemente firmeza àqueles que demonstram afeto, mas se recusam a viver os personagens que ele cria em seu mundo de fantasias. Mas recebe de portas escancaradas os que se entregam em seus braços e se permitem guiar por ele.

No mundo do segundo anjo de Dolores não existe televisão, nem Mc Donalds. Nos limites de sua delicada redoma fotografa-se muito, ouve-se Chico Buarque e contam-se fábulas sobre justiça social. Os caroços que o geraram inspiram o coração de Dolores, que fica extasiada ao contemplá-los lustrando a vidraça da redoma, na tentativa de proteger o anjo do perigo da alienação e da indiferença.

Há poucos dias, ao chegar ao espaço onde habita seu segundo anjo, Dolores se assustou ao deparar-se com uma casinha infantil, corrompidamente decorada com imagens de um super-herói capitalista, plantada no meio da sala de estar.

Recebera o presente de um familiar indiferente à redoma que seus pais com tanto zelo construíram. O menino estava radiante com o novo brinquedo, e os pais, curiosamente, pareciam estar alheios à ameaça. Dolores quis formular uma indagação provocativa, mas antes que pudesse concluir o raciocínio, seu segundo anjo tudo esclareceu:

- Tia, vem brincar comigo aqui na casa dos sem-terra!


Tuesday, August 01, 2006

Dolores na Ilha


Quando Dolores pousou no Aeroporto Internacional José Martí, em Havana, as lágrimas ocuparam seus olhos. Finalmente pisava naquela terra, que só conhecia em sonhos e livros, mas que já era tão dela, que não precisou ser guiada para chegar aos refúgios de liberdade da ilha.

Logo na saída do aeroporto, esbarrou a retina num outdoor onde a foto de Fidel aparecia soberana ao lado de palavras de ordem e solidariedade. Como o seu velho rabugento, de barba desgrenhada, podia ser tão suavemente autoritário! Apaixonou-se mais uma vez por aquele homem, que cultivava em si e semeara entre os seus o dom maior de não se conformar com o que não é natural.

Parou por um instante, deslumbrada com o novo e angustiada diante de sua limitação ocular. Se morresse naquele momento, e Deus quisesse lhe conceder uma última alegria, iria pedir mais um par de olhos, para transbordar de encantamento.