Wednesday, September 13, 2006

Diàrio de Transbordo - Parte I: Dolores e os colombianos

Mais tempo levou Dolores no exercício parcimônico de eleger o autor que a acompanharia nas doze horas de vôo até a Cidade do México que no ato de organizar os pertences essenciais a sua sobrevivência no exílio voluntário. Certamente só sentiria as conseqüências de tamanho desleixo - ocasionado, como se pode constatar, pelo vìcio obstinado pelas letras – quando no destino final percebesse que as calcinhas ficaram esquecidas na gaveta, as botas de couro debaixo da cama, e o casaco no cabide atrás da porta. Mas todos esses bens cotidianos lhe pareciam absolutamente desnecessários ante à grandeza de gozar da companhia do livro certo para abençoar o inìcio da viagem.

Entre todos os livros que lhe aguardavam impacientes para serem lidos nas estantes dos sebos decadentes do Centro da cidade ou na charmosa Travessa de Ipanema, caiu-lhe nas mãos os “Doze contos peregrinos” de Garcìa Márquez. No ano anterior, quando se preparava para seguir a mesma rota, conheceu as ainda anônimas putas tristes. Mais encantada pelo tìtulo que pelo autor, a quem conhecia com certa intimidade, mas por vezes a aborrecia com tantas descrições metódicas, elegeu-as como companheiras para aquela que seria sua primeira incursão à terras mexicanas. Ao recordar das horas de gozo sensitivo que as putas lhe proporcionaram a vinte mil metros de altura, Dolores não teve dùvidas de que o colombiano seria o escolhido para acompanhá-la durante as longas horas de ócio aéreo.

...

Acomodou-se como lhe convinha ao lado da claustrofòbica janela, e antes que qualquer desconhecido ameaçasse um inconveniente inìcio de conversa, cobriu os olhos com o cobertor. A àquela hora da manhã só a promessa de mais algumas horas de sono a seduzia. Adormeceu, indiferente à turbulência que já causava náuseas em alguns passageiros de tripas mais sensíveis. Sonhou que, assim como os livros, havia uma infinidade de sonhos agrupados numa prateleira esperando para serem sonhados por ela. Escolheu um ao acaso, e sonhou que Garcìa Márquez sonhava com ela.

Acordou sobressaltada pelos gritos da aeromoça, que discutia com seu vizinho de cadeira. Até onde conseguiu ouvir, entendeu que discutiam pois o desconhecido havia insultado a pátria da garçonete aérea, alegando que no Panamá não havia nada alèm de um canal vendido e gente besta, e que a sua terra, Colômbia, era infinitamente superior em belezas naturais e riquezas econômicas. Desprendida de qualquer postura profissional, a aeromoça retrucou, veemente, alegando que tudo o que havia de riqueza na Colômbia se devia unicamente ao trafico de drogas, e que todos os colombianos eram dependentes físicos e químicos dos safados dos estadunidenses.

O espetáculo de tragédias americanas tirou o sono de Dolores. Pediu um café preto à panamenha e resgatou os doze peregrinos do fundo da mochila. Mas antes que conseguisse terminar a leitura das orelhas, o inconveniente colombiano arrancou-os das mãos dela, encantado com as letras em português. Enumerou, vaidoso, as obras que lera do compatriota, tecendo incríveis comparações com os cenários descritos nas obras de Márquez com as paisagens de sua terra Natal, Barranquilla. Vangloriou-se das belezas de Bogotá, capital, segundo ele, difamada pela imprensa internacional e pelos filmes de Hollywood, e convidou Dolores para conhecer o Carnaval colombiano, realizado a cada dezembro. Como não conseguisse arrancar qualquer sinal de interesse por parte da sonolenta jovem, lhe indagou:

- À que te dedicas?

Sem voltar os olhos para o indesejado companheiro de viagem, Dolores balbuciou:

- Eu alugo sonhos.

Demonstrando familiaridade com a lógica do absurdo, o colombiano retrucou:

- Quiero dos.

Surpresa com a reação do colombiano, Dolores esqueceu-se de vez de seus doze peregrinos e entregou-se aos devaneios verbais do vizinho:

- Custam dois mil pesos colombianos.

Tranqüilo e metódico, como se durante toda a sua vida tivesse se dedicado a alugar sonhos no avião, retirou a quantia de dentro da carteira de couro marrom e entregou-a a Dolores. Radiante pela descoberta de um novo locatário de utopias, Dolores guardou a quantia (equivalente a 1 Real) dentro do bolso dianteiro da calça, e com a ponta dos dedos alcançou os olhos do colombiano.

Escolheu ao acaso dois dos doze contos peregrinos, e recitou cada palavra como se fosse uma professora de retórica de alguma escola grega, ansiosa de que seus discípulos sorvessem o sentido de cada sìlaba para tecerem, cada um a seu modo, suas noções de fantasia e realidade.


Panamá, 8 de setembro de 2006.


1 Comments:

At 3:37 AM, Blogger Lucas Bandeira said...

Dolores, todas essas fotos são suas?

 

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