Monday, November 20, 2006

20 de novembro




As duas bolas azuis esculpidas nas duas concavidades da face hipnotizaram Teresa. Era uma carne de cor negra de ébano, que fazia brotar duas flores alquímicas azuis, exalando um odor forte de incenso amadeirado. Ouviu tambores e o estalar dos pés saltando sobre o chão de terra batida. Só então reparou na mordaça de ferro oprimindo boca, pescoço e dignidade. Sangravam sonhos de liberdade por suas veias dilatadas, e carregava na íris as marcas do opressor.


- Quem é essa moça bonita, Dolores?

- É uma santa que foi amordaçada até o fim dos seus dias, porque não aceitou ser a mulher do filho do homem que a escravizava. Tem as mãos pretas, gastas de tanto se doar; esses olhos que nem precisam da boca para falar e essa beleza que nenhuma maldade é capaz de apagar.

- Dolores, eu já sei o que eu quero ser quando crescer: eu quero ser preta.

Sunday, November 19, 2006

DOLORIANA


Foi preciso compreender,
Para não ter que perdoar,
Zombar da dor
e inventar nova paixão.

Foi preciso resignificar a vida,
Para transvalorizar o ser,
Desexistir
e renascer nova beleza.

Foi preciso entregar-te meu corpo,
Para pensar alturas
Voar de amor
e decantar a solidão.


(Para todos os santos homens de Dolores)

Thursday, November 16, 2006

O REENCONTRO


A primeira coisa na qual reparou ao entrar foram as folhas verdes, brasileiríssimas, contrastando com os móveis do início do século. Perguntou-se se além do novo arranjo na sala, haveria algo de novo naquele espaço que para ela já parecia tão familiar. Móveis em perfeita ordem, sem qualquer sinal de poeira que pudesse denunciar a passagem dos dois meses que os apartavam.

As luzes do corredor pareciam ter sido esquecidas acesas desde a brusca despedida, quando se amaram, aflitos, entre as duas paralelas brancas de concreto. Imaginou-o prostrado sobre a cama, mãos e braços abertos, com ânsias dela. A imagem mental fez com que se apressasse, mas ao chegar ao vão da porta do quarto deteve-se, insegura. O tempo teria apagado todas as belezas do que com tanta paixão haviam construído? Teria ele encontrado poesia em outros seios, e agora a atraía para conceder-lhe o tiro de misericórdia de um adeus entre um orgasmo?

Lembrou-se do primeiro dia em que invadiu aquele lar, tão segura de si, sem desejo de se dar. Queria apenas repousar uma noite entre as pernas daquele homem que a desafiara e esnobara seus valores, para que ele tomasse a prova de seus versos e de seus mistérios, e depois suplicasse por mais poesia e mais revelações. Mas a medida em que as noites foram se multiplicando, ela passou também a suplicar, e se deu, e se revelou, deixando as máscaras caírem como pétalas de uma rosa que nunca acaba.

Espiou-o pela brecha da porta, e encontrou-o nu, com um meio sorriso, que deixava a boca entreaberta, pronta para o beijo que ela ansiava por dar. Entrou fulminante, e jogou-se toda sobre ele, para dizer com o ventre que sentira a sua ausência.

...

Sentiu-se tranqüila com a constatação de que nada havia se perdido. Encontrou com os dedos o livro de contos eróticos na cabeceira da cama, deixou-se rodear pelas paredes, já tão acostumadas com a sua voz; sentiu o odor quente dos lençóis impregnados com seu cheiro de menina. Entregou-se mais uma vez aos caprichos dele, oferecendo-se toda, como a escrava submissa renegada.

Sonolenta, com os sonhos em fila para serem sonhados, quis repousar sobre ele, mas inesperadamente a noite recomeçou. Olhou fixamente para ela, afastando o sono com as mãos ávidas de desejo, e revelou novo mistério, que a fez trepidar de excitação.

Entregou em suas frágeis mãos de menina, um pincel. Ela pegou-o, hesitante, sem saber em que direção seguir, quais cores usar, temerosa de deixar marcas que não poderiam ser apagadas. Ele a estava desafiando uma vez mais, e dessa vez se recusava a ajudá-la.

Tentou, desajeitada e ansiosa, manipular pincéis e aquarela, mas as tintas escorregavam, e a tela se movia todo o tempo. Pensou em um projeto dadaísta, logo em um surrealista, acudiu ao impressionismo.

Mas nenhum traço parecia fazer sentido. Mil vezes lançou cores ao ar sem sucesso, e já estava preste a desistir quando ouviu seu primeiro gemido de prazer. Renovada, atreveu-se mais e mais, certa de que se vencesse o desafio o teria refém de suas poesias.

Ao acordar na manhã seguinte, embalada pela respiração dele, reparou, maravilhada, que assim como ela, ele agora tinha um Van Gogh em sua cabeceira:"Nuit Etoille à St. Rémy ".

Tuesday, November 14, 2006

Diário de Transbordo - Parte Final: PRETENSÃO


A Avenida Reforma lhe pareceu mais ampla. As árvores de um verde escuro único lhe acolheram com a sombra de seus galhos góticos. O Anjo da Independência, lavado em ouro, curvou-se complacente ao vê-la passar.

Caminhou devotando a cada passo atenção exclusiva, percebendo no estalar dos ossos o movimento de cada célula. Pequenos pedintes de mãos aflitas lhe seguiam, esforçando-se para despertá-la do êxtase. Mas ela era só silêncio, ausente de todo o sentido que aquele país havia lhe concedido.

O Museu de Belas Artes parou diante dela, emoldurando-a com seus pilares europeus. Perderia sua companhia do alvorecer, a menina das tardes de outono que vinha observar, do alto de suas escadas, aqueles que a observavam. Estava sempre cheio de seres aflitos, que subiam e desciam freneticamente seus degraus, mas era ela a única que lhe recitava poesias, acariciava seu corrimão, que ria e chorava só para ele, resgatando-a de sua mórbida materialidade.

Os vendedores ambulantes da esquina do Senado a observaram mudos, resignados diante da perda da mulher que todas as manhãs inspirava hinos masculinos ao cruzar a avenida com seu decote brasileiríssimo.

Os pães açucarados e os donuts recheados com cajeta exibiam-se para ela na vitrine das padarias da Praça do Zócalo. Mas ela passou indiferente, com os olhos voltados para dentro, escorregando pelo asfalto sem querer chegar.

A Catedral Metropolitana a abençoou, balançando seus sinos para a sua pequena devota, de crenças católicas, maias e admiradora dos rituais afros.

As ruínas astecas desmoronaram ainda mais, inconsoláveis, ao vê-la chegar pela última vez.

O Palácio de Governo e a Suprema Corte de Justiça lhe estenderam o tapete vermelho.

Dois mariachis lançavam notas ao vento, e ela as acolhia com os ouvidos sem deixar-se penetrar. A bandeira tricolor lhe sorria do alto da Torre Latino-americana, mas ela só existia para a sua nostalgia.

As rotativas do jornal pararam.

Voltou para o lar mexicano, desejando perder-se no caminho que já conhecia tão bem. Suas malas a miraram com desdém. Cerrou-as deixando metade da camisa brasileira do lado de fora. Sentiu o peso de cada dia daquele outono sobrecarregar-lhe a mente e o antebraço.

O aeroporto da capital desesperou-se ao vê-la. Parou as escadas rolantes, travou as portas de vidro, mobilizou policiais para impedi-la de passar pelas barreiras diplomáticas. Mas ela cruzou todos os obstáculos e alcançou o avião, que moveu as asas em sinal negativo, na última tentativa de não perdê-la.

Mas ela invadiu-o, melancólica e soberana. Recostou os ombros exaustos no banco 22 A e deixou-se embriagar pelas nuvens, sorvendo todo o silêncio que necessitava para suportar a travessia.

E o Atlântico coube todo em sua inspiração.

Wednesday, November 08, 2006

Diário de Transbordo - Parte XVIII: O desafio de Teresa




- Dolores, Dolores, eu tenho um desafio pra você. Se você acertar as duas perguntas que eu vou te fazer, eu prometo que fico um dia inteirinho sem te fazer perguntas.

- A recompensa é animadora... Pergunte, Teresa.

- De onde o Bush tá pegando tijolo pra construir o muro duplo na fronteira com o México?

- Que pergunta, menina! Não faço nem idéia.

- Ora, de Berlim!

- Hummm, faz sentido. E qual é a segunda?

- De onde é que os estadunidenses estão importando a tecnologia para a obra anti-latinos, Dolores?

- Ih, Teresa, me pegou outra vez.

- Da Muralha da China, Dolores. Pensei que você fosse mais esperta. Mas já que você perdeu, agora eu posso fazer um montão de perguntas...

- Me parece justo, embora irritante.

- Por que a Heloísa Helena perdeu? Por que seus peitos são maiores que os meus? Por que os homens fogem da gente? Por que a gente não pode voltar de barco pra casa? O que havia antes de não haver nada? Quando é que...

Diário de Transbordo - Parte XVII: OAXACA


Quando o carro deixou a estrada de terra é que o coração começou a bater mais forte. Sempre acreditou que emoção está é na cabeça, mas o membro aflito, querendo sair a qualquer custo de dentro do peito, quase a convenceu do contrário. A cabeça permanecia imóvel, sem querer ver os soldados que corriam de um lado para o outro sem saber aonde ir, e a gente de cor amarela e cartolina nas mãos gritando um cântico desafinado para ninguém ouvir.

Pensava encontrar professores como os de sua infância: roupas antiquadas e engomadas, óculos de leitura, cabelos alinhados, fala mansa, mas suficientemente firme para impor ordem. Mas estavam todos sujos, desgrenhados, com cara de fome de tudo, e expondo nos cartazes a pouca intimidade com a gramática. Lembrou dos seus sem-terra, dos seus sem-teto, dos seus filhos da seca, e sentiu vontade de fugir daquela guerra que não era dela.

Não reconhecia como sua a dor daqueles professores, que lutavam pela destituição do governador do estado, embora sentisse entre gritos e cartazes mal escritos resquícios da paixão indignada que conduz os movimentos de esquerda. Formaram uma Assembléia Popular (APPO) para estabelecer uma forma de governo alternativo, realmente preocupado com a educação das comunidades indígenas de Oaxaca, depois que o governo reprimiu brutalmente os professores grevistas.

Montaram uma estrutura bem similar a dos assentamentos de sua terra: reuniões periódicas, divisão de tarefas, disciplina, tratamento redobrado para as cordas vocais e a disposição para morrer pela causa, se necessário. E ela estava ali, misturada aos maestros campesinos, sem conhecer seus cânticos e sem sentir ódio pelo governador que assassinava professores grevistas. Sua missão consistia em marcar no papel o que seus olhos registrassem: conhecer as histórias de resistência e os sonhos daquela gente.

Nos dias que se seguiram, comeu da comida deles, banhou-se onde se banhavam, tremeu de medo atrás de barricadas de saco de areia, participou das assembléias, jogou bola com os filhos dos professores grevistas, e se sentiu quase em casa. Os outros repórteres estranhavam seu interesse pelos jogos de infância enquanto soldados disparavam sem piedade contra o muro de seres humanos. Seguramente fez a pior cobertura de todos os tempos em sua primeira experiência como repórter enviada para um campo de batalha. Talvez por covardia, ou provavelmente por incapacidade de unir reportagem e militância, preferia servir a comida nos alojamentos, enrolar colchonetes e pintar cartazes com palavras de ordem.

Riu com as piadas do José, professor de educação indígena, ajudou o pequeno Manuel a fazer a lição de casa, contou para María e para a Lupita a história de Che Guevara. Dormiu e acordou por uma semana ouvindo o estalar das metralhadoras a poucos metros de seus tímpanos. Surpreendeu-se com a capacidade do ser humano de se adaptar a tudo, até ao medo.

Mas no dia em que voltaria para a capital do México, gritos interromperam a despedida com Rosío, que lhe havia presenteado com uma pamonha rosada. Haviam matado um jornalista: Brad Will, de 36 anos, foi baleado no abdômen enquanto registrava um dos enfrentamentos. O documentarista estadunidense, militante de movimentos sociais, sangrou até a morte no centro da arena, por uma guerra que não era dele.

Quando o carro encontrou a estrada de terra, o coração voltou a bater forte. Pensou no companheiro morto, nas crianças oaxaquenhas sem aula, nos policiais que defendiam o que deveriam atacar, nos professores famintos e semi-alfabetizados. E percebeu, com atrasada nostalgia, que aquela guerra também era dela.

DOLORES RECOMENDA:

http://www.asambleapopulardeoaxaca.com/

http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3363

Sunday, November 05, 2006

Diário de Transbordo - Parte XVI: Mitos e Lendas - O Espanto



Em Tijuana – sexo, tequila, marijuana – Dolores perdeu a carteira, a câmera fotográfica, a saia vermelha rodada e o passaporte brasileiro.
Foi assaltada num banheiro público de um bar clandestino, às três da madrugada, no caminho de volta para a casa na capital. Ao chegar ao destino final, sentiu que suas pernas haviam morrido desde o ocorrido. Nos dias que se seguiram, não tinha forças para caminhar, e nem os tacos ao pastor lhe abriam o apetite.

Surpreendida com a incomum apatia de Dolores, Ofélia, uma amiga sexagenária mexicana, deu o diagnóstico: “Dolores, mi hija, tu tienes espanto”. De acordo com a sabedoria indígena, as pessoas podem adquirir “espanto” ou “susto” ao passarem por lugares de energia negativa, quando cruzam com maus espíritos ou quando são atacadas por animais. Com a chegada da “civilização”, os curandeiros indígenas passaram a incluir “roubo, estupro e seqüestro” como outras adversidades causadoras da enfermidade espiritual.

Ofélia explicou a Dolores que espanto é doença grave, e como tal deve ser tratada a sério. O tratamento mais indicado é levar o doente ao local onde adquiriu o espanto, para um ritual de purificação. Dolores deveria voltar ao banheiro público de Tijuana, ao meio-dia, para tomar um banho de ovos, aguardente e um punhado de ervas. Mas a idéia de viajar quilômetros para ser tratada como tempero de frango de domingo não lhe devolveu o ânimo.

Diante da recusa da amiga espantada, Ofélia apresentou a Dolores uma segunda opção. Como hoje em dia ninguém tem tempo para rituais e para todas as outras coisas que realmente importam, explicou, os mexicanos inventaram uma forma de ritual expresso: quando o espantado não tiver esperando, um amigo de bom coração deverá jogar um copo de água com ervas nas costas do enfermo. Com o banho surpresa, o espantado recobra, imediatamente, a felicidade perdida.

Na noite em que Ofélia lhe revelou que sofria de espanto, Dolores resolveu sair para beber mojitos no bar cubano, em companhia dos amigos operários da comunicação. Bebeu a ponto de subir no palco por uma canção do Polo Montañez.

Faltando duas quadras para chegar cambaleante a casa já iluminada pelos primeiros raios da manhã, sentiu as costas encharcadas. Virou-se a tempo de ver o espectro de Ofélia virando a esquina com um copo vazio nas mãos.

Cidade do México, 23 de outubro de 2006.