Wednesday, August 30, 2006

ELEIÇÕES II


Pra ser sincera, aliás, pra ser sincera não, detesto esta expressão. Nada contra a sinceridade, mas é que ao utilizá-la fica parecendo que todas as vezes que não a utilizei não fui sincera. Cria uma espécie de escravidão escrita, e escravidão, seja de que natureza for, é sempre uma merda. Mas como ia dizendo, ou melhor, escrevendo, eu sinto falta de toda aquela porcalhada que emporcalhava, ficou redundante, eu sei, mas quis usar esse recurso de propósito para enfatizar a porcaria, que os porcos não se ofendam, adoro porco assado com batatas, mas então, como dizia eu, sinto falta daquelas porcarias de papéis vagabundos que voavam como pombos pelas ruas na época das eleições.

Tenho saudades também dos postes enfeitados com rostinhos feios e sorridentes. Aliás, do que riem os candidatos a qualquer coisa? Se me candidatasse a qualquer coisa, adoro essas palavras que não querem dizer coisa alguma, como coisa, eu jamais sobreviveria nem por um dia em redação de jornal, então, se me candidatasse à vereadora, deputada, presidenta, isso, presidenta, porque presidente é machismo, eu exibiria uma cara triste para a câmera. Ou melhor, triste não, eu abriria o berreiro, acho que marqueteiramente funcionaria.

Acabaram com os rostos nos postes, acabaram mesmo, como sujeito indefinido, pois foi a lei que acabou com a alegre porcalhada que emporcalhava as ruas em época de eleições, mas lei não pode ser agente, nem o Estado, por isso esse lance de instituição funciona tão bem, porque quem faz fica sempre indefinido, e a gente, nós, os fudidos, não temos com quem reclamar. Agora o que temos são postes ambulantes, essa gente fudida que fica prostrada no meio do tráfego.

Outro dia vi um poste de setenta e poucos anos, segurando uma carinha sorridente. O olhar do poste me chamou a atenção, e fui até ele, sem saber direito pra quê, aliás, eu nunca sei o para quê das coisas, e descobri que o poste estava feliz por ser poste, porque antes de ser poste não servia para coisa alguma, e agora, veja você, disseram, isso, disseram mesmo, no indefinido, que o poste voltou a ter utilidade, e então o poste ficou feliz de poder ser útil para alguma coisa. Depois de falar com o poste, no caminho de volta não lembro mais pra onde, eu nunca sei em que direção estou indo, mas então, no caminho de volta, passei a observar com mais curiosidade os postes e percebi que só haviam postes velhos, já desgastados pelo uso.

Os mais novos, com braços fortes e falantes, eram porta-bandeiras. Sacudiam pra lá e pra cá os rostinhos feios e sorridentes, rodopiando entre os carros, como se estivessem na Sapucaí, que é o lugar onde nós, os cariocas, os que são cidadãos e os que não são, brincamos de ser feliz, sambando, numa festa pagã que a gente, assim, no indefinido, porque eu não sei quem deu, perdão pela ignorância, deu o nome de Carnaval.

Então, como dizia, vendo os porta-bandeira de dentro do ônibus, eu achei que era Carnaval, e me deu uma puta vontade de sambar com eles, ali, no meio da pista, mas eu não desci, porque para ser porta-bandeira, pensei, você precisa de uma bandeira, é lógico, e eu ainda não tenho a minha. Aliás, eu até tenho, mas não ando com muita vontade de sair ostentando ela por aí, quer dizer, não é nem falta de vontade, é fraqueza nos braços.

Sei, sei, deveria ter vergonha disso, dessa preguiça involuntária, mas esse lance de democracia é muito trabalhoso, acho que só os muito fudidos estão preparados para ela, tem os braços preparados de tanto virar laje, ah, claro, e de segurar bandeira na Sapucaí, porque ninguém é de ferro, nem os muito fudidos. E então me convenci, no caminho de volta para não me lembro onde, que precisava me fuder um pouco mais, pra deixar de ser tão preguiçosa, deixar de perder tempo com as tolices escritas. Mas depois, antes mesmo de chegar não sei onde, voltei atrás, e resolvi que escreveria só mais uma, umazinha só, tolice escrita, e depois, num futuro próximo, me redimiria.
(Para o João, poste eleitoral)

2 Comments:

At 2:30 PM, Blogger Mauro Sérgio Farias said...

Perdeu-se um pouco aquele ar tão alegre (ainda que falso) de "festa da democracia". Até porque toda a festa emporcalha o chão mesmo.

Na prática, entretanto, isso não é festa nem democracia, pois nem todos os candidatos podem pagar por postes. E para muitos brasileiros não resta mais nada além de ser poste para sobreviver.

50!50!50!

 
At 2:43 PM, Blogger A digestora metanóica said...

deleite literário! surpresa boa voltar aqui depois de um tempo e encontrar uma crônica tão emporcalhada, fodida e genial!
sem mais palavras, pra não esmerdalhar essa coisa toda, apesar de eu saber que tenho todo o direito de fazer um carnaval de letras inúteis neste espaço democrático.

 

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