Tuesday, August 08, 2006

ESTAMIRA

Após uma semana vazia de poesias, encontrei-me com Estamira. Antes de ouvir o que ela tinha a dizer, chorei todas as minhas dores em seu olhar. Eu, menina branca, de classe média, operária do saber, confessei-lhe minhas misérias, a dor de estar perdida em meio às obrigações cotidianas, sem espaço para fantasiar, sem tempo para sentir. Ouviu-me com doçura e benevolência, e nos cento e vinte minutos seguintes contou-me sua história.

Há vinte anos trabalhando no aterro sanitário de Jardim Gramacho, entre abutres e toneladas de lixo, esta mulher de 63 anos e sabedoria milenar, redescobriu a natureza do bicho homem, ou “os sanguíneos”, como prefere categorizar. Totalmente desacreditada da vida, após duas traições conjugais, dois estupros, e a fome, ela revela que “transbordou para ficar invisível”. O que os doutores (que tudo copiam) chamam de esquizofrenia, Estamira - que “Está aqui, está lá, está em todo lugar” – define como “o além do além, onde tudo é transbordo”.

Com absoluta sanidade, confessa que “vive nesse mundo, para se defender da realidade”, e responde com clara firmeza aos filhos que tentam convencê-la de que a vida no sanatório é a melhor opção: “Eu sou perturbada sim, mas eu sei distinguir o que é perturbação e o que não é”.

Estamira blasfema contra o Deus doutrinário, inventado pelos “sanguíneos”, ao mesmo tempo em que declara um amor verdadeiro, transbordante, ao “Deus que ela vê com lucidez”. “Deus, como sou lúcida!”, alegra-se, encantada com a tempestade que despenca sobre o lixão, transformando os restos de alimento podre em um rio ácido e borbulhante de poluentes.

Plena de esperança refletida nos olhos ressequidos, profetiza: “Eu acredito no comunismo superior”. Rica e exultante, dançando entre urubus esfomeados, compadeceu-se da minha miserável condição de escrava: “Trabalhar não tem que ser sacrifício. Eu não vivo por dinheiro. Eu que faço o dinheiro”.

Enquanto o Sol lilás se deita sobre as montanhas de lixo ao final da tarde, Estamira transborda de beleza, atraindo os apaixonados Pinguelo e João, seus companheiros na arte de “catar descuidos”. Os três, libertos das ilusões do mundo real, alcançam a dimensão da invisibilidade, e exclamam, com absoluta verdade, que “tudo o que é imaginário existe, e tem e é”.

(Para Sílvia, por compartilhar)

4 Comments:

At 5:54 AM, Blogger JH said...

que beleza!

"As coisas mais belas são ditadas pela loucura e escritas pela razão" (André Gide)

 
At 6:31 PM, Blogger Cláudia Lamego said...

Ou faladas, no caso de Estamira.

Lindo isso aqui. Onde esteve Dolores esse tempo todo??

 
At 8:00 AM, Blogger Mauro Sérgio Farias said...

Estamira comprova o quanto é verdadeira a mensagem bíblica, de que Deus se revelaria aos mais humildes.

Sua visão de Deus, tão leiga e laica, é bem mais próxima da realidade do que o monstrengo opressor e patriarcal que algumas igrejas nos impingem como sendo a face de Deus...

 
At 12:43 AM, Anonymous Cara Menyembuhkan Mata Minus said...

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