Thursday, August 03, 2006

ANJOS


Dolores tem dois anjos. O primeiro herdou dela a pele alva e a boca farta. E também o temperamento tempestivo, intercalado com rompantes de mansidão sem fim.

Recebeu da mãe um nome esquisito, escolhido, tal qual jogo de azar, do velho Atlas Geográfico Universal, esquecido durante duas décadas na caixa de livros usados de Dolores. Depois a mãe implicou com a inicial, resolveu trocar o “i” por “y”, e, como se não bastasse a confusão alfabética, encaixou um “A” na frente, para o que menino pudesse ser “o primeiro em tudo”.

Assim nasceu Ayslã, que por força das paixões de sua mãe, foi levado, desde a primeira semana de vida, ao exílio, numa terra que vive sob as dores do tráfico. O primeiro anjo de Dolores, logo que aprendeu a falar, descobriu-se diferente dos demais querubins de sua terra. Ele era o único de pele branca; o único a estudar em escola privada; o único a comemorar os anos; o único apadrinhado por Dolores, que o cobre de presentes e vem de uma terra desde onde é possível ver o mar.

Consciente de sua excepcional realeza, o primeiro anjo de Dolores descobriu, mui precocemente, o mal da vaidade. Mas como não encontrasse outros príncipes em seu reinado para o exercício dos jogos de infância, Ayslã também foi obrigado a aprender a ser gentil e a compartilhar bolas e super-heróis com os filhos menos afortunados do exílio.

O segundo anjo de Dolores nasceu exatamente um ano depois do primeiro, por força dessas conspirações do Universo que a lógica humana não alcança. Foi gerado pela fusão de dois corpos germinantes, transbordantes de utopia.

Os pais lhe batizaram com nome de santo. Desde as primeiras horas de vida do rebento, o defenderam, com unhas e dentes, dos apelidos que terceiros, indiferentes à importância de dar significado a um novo ser, insistiam em criar. “O nome dele é Antônio. Não é Tonico, nem Tonho, nem Toninho”, bradavam eles.

O segundo anjo de Dolores viveu a primeira fase da infância gozando da impertinente, e por vezes opressora, companhia dos adultos. Como estratégia de sobrevivência, o pequeno logo aprendeu a ser independente, e aprimorou-se na arte de fazer cumprir a sua vontade.

Antônio ignora com veemente firmeza àqueles que demonstram afeto, mas se recusam a viver os personagens que ele cria em seu mundo de fantasias. Mas recebe de portas escancaradas os que se entregam em seus braços e se permitem guiar por ele.

No mundo do segundo anjo de Dolores não existe televisão, nem Mc Donalds. Nos limites de sua delicada redoma fotografa-se muito, ouve-se Chico Buarque e contam-se fábulas sobre justiça social. Os caroços que o geraram inspiram o coração de Dolores, que fica extasiada ao contemplá-los lustrando a vidraça da redoma, na tentativa de proteger o anjo do perigo da alienação e da indiferença.

Há poucos dias, ao chegar ao espaço onde habita seu segundo anjo, Dolores se assustou ao deparar-se com uma casinha infantil, corrompidamente decorada com imagens de um super-herói capitalista, plantada no meio da sala de estar.

Recebera o presente de um familiar indiferente à redoma que seus pais com tanto zelo construíram. O menino estava radiante com o novo brinquedo, e os pais, curiosamente, pareciam estar alheios à ameaça. Dolores quis formular uma indagação provocativa, mas antes que pudesse concluir o raciocínio, seu segundo anjo tudo esclareceu:

- Tia, vem brincar comigo aqui na casa dos sem-terra!