Thursday, June 15, 2006

CHIAPAS: CELEBRAÇÃO DA IGUALDADE - PARTE 2


San Juan Chamula

Ao redor de San Cristóbal de Las Casas, uma formação montanhosa de um verde opaco. As indígenas, com suas crianças envoltas na cintura, caminham em direção à densa estrada de terra seca. A poeira encobre os corpos cansados, e uma cerca de bambus e folhas ressecadas demarca o território. Um pedaço de papelão manuscrito avisa: “Bienvenido a San Juan Chamula”.

Os pastos queimados pelo sol e as dezenas de criancas mendingando pelas ruas de terra batida avisam que a época da colheita está distante. Os programas educacionais mantidos pelo governo mexicano começam justamente quando os pastos estão transbordando de grãos, e, curiosamente, as férias são decretadas quando já não há mais trabalho por fazer nos campos. Resultado: 87% da população local é analfabeta.

No interior das casas de pau-a-pique, crianças carregando outras crianças nas costas, ajudam a alimentar as ovelhas, cuja lã é a unica proteção para o frio, que chega a atingir cinco graus negativos nas noites mais gélidas. Por isso as ovelhas, que podem ser encontradas nos mais remotos cantos do povoado, são poupadas do sacrificio. Há quem pense que há ainda outro motivo por essa proteção: São João, padroeiro da comunidade, tem, a seus pés, na imagem difundida pela Igreja Católica, uma ovelha.

A brisa seca de San Juan Chamula e o solo árido exalam espiritualidade. Desde as verdes cruzes (decoradas com folhas misteriosamente verdes, apesar do sol), até o templo maia de fachada católica, passando pelo cemitério adornado com fitas coloridas e em cujo centro encontra-se uma igreja católica consumida pelo fogo, os sinais do fervor religioso dos tzotziles emanam no ar. Passados cinco séculos da ocidentalização das tradições indígenas, é árdua a tarefa de distinguir que elementos são autênticos e quais foram adotados dos brancos.

Seus joelhos se dobram diante da Cruz Maia, símbolo da criação do mundo, que aconteceu em 3014 a.C., quando céu e terra se encontraram. De acordo com a fé maia, aos doze dias de dezembro do ano de 2012, o fenômeno se repetirá. Seus joelhos se dobram também diante dos santos da igreja católica, e da Virgem de Guadalupe, “a nova mãe” dos tzotziles – a primeira mãe é a natureza.

Sustentando bebês nas costas, garrafas de refrigerantes e velas nas mãos, as mulheres adentram a igreja de fachada verde e branca, adornada com fitas multicoloridas. Para entrar é preciso permissão do líder comunitário local que, após receber 20 pesos e checar se o visitante porta máquina fotográfica (é terminantemente proibido tirar fotos na serra, pois, segundo os guias, os povos indígenas crêem que o equipamento capta a alma humana), nos encaminha ao interior do templo.

Nenhum banco. Chão coberto de palha, folhas e velas (centenas delas), santos com braços amputados. Aves sacrificadas, choro de criança, músicas natalinas intermitentes tocadas por uma caixinha de música consumida pelo tempo. Apesar do aparente alvoroço, no interior do templo o semblante calmo dos indígenas, executando, com maestria, seus rituais, é confortante. O sangue de uma ave asfixiada é derramado sobre a cabeça de um bebê, enquanto um curandeiro joga refrigerante (substituto do tradicional vinho indígena, em função do encarecimento do produto e da ampla oferta de Coca-Cola no local) sobre as velas ofertadas pela saúde da criança.

O tamanho das velas e o número delas varia de acordo com o poder aquisitivo da família que está executando o ritual. Ao caminhar pelo interior do templo, onde ao centro esbarramos com a imagem de São João e sua ovelha, é preciso ter cuidado para não esbarrar em velas com quase um metro de altura, ou para não apagar a chama de outra que mal alcança a altura de um dedo indicador. As marcas de fogo nas paredes denunciam o prenúncio do desastre, a exemplo do que aconteceu com o templo católico incendiado, hoje localizado no centro do cemitério local. Aliás, os santos cujos membros superiores foram amputados pertenciam à igreja católica incendiada: indignados com o incêndio que destruiu o templo, os tzotziles impuseram esta punição aos santos, por não haverem impedido a tragédia.

Diante do templo maia, mulheres ofertam casacos de lã recém-cosidos, enquanto os seus se protegem da violência do sol com trajes herdados de gerações passadas. O silêncio é inquietante, rompido apenas pelo alvoroço das crianças. A comunicação com as vendedoras se faz pelos sinais. A essa altura entendo o por quê do misticismo que envolve os guias locais, em sua grande maioria mestiços, revestidos de um “poder bilíngüe”, que lhes confere o respeito das mulheres e a simpatia das crianças. Basta qualquer ameaça de tentativa de comunicação com os tzotziles, para que um deles, com trajes em muito semelhante aos do hollywoodiano Indiana Jones, se aproxime e se coloque na posição de tradutor, sem esperar nenhuma recompensa além de uma expressão de surpresa do estrangeiro pela excentricidade do dom do mestiço de falar o dialeto local. Com a visão
prejudicada pela intensidade dos raios solares, diversas vezes tive a sensação de que eles, indígenas e mestiços, e a terra, árida, eram um só. Uma chama quase imperceptível parecia fazer o solo estalar, como um grito contido.

Os homens evitam um contato mais próximo. Caminham a passos largos e logo desaparecem na serra. Alguns cobrem o rosto, deixando à mostra apenas os olhos, que revelam a angústia daqueles que já estão cansados de esperar e a maturidade de quem aprendeu que para o governo é mais fácil cumprir uma ameaça que uma promessa.

Aquelas terras, até meados da década de 70, pertenciam aos camponeses, que cultivavam cana, café e milho. Nos anos 70, contudo, Chiapas se converteu em um grande produtor de eletricidade e de petróleo, e parte da população optou por vender sua força de trabalho aos donos das refinarias. Os tzeltales, tzotziles, choles, zoques, tojolobales e mestiços resistiram, e, permanecendo na selva, se uniram e formaram a Associação Rural de Interesse Coletivo União de Uniões (ARIC U de U), para defender seu espaço, cada vez mais disputado por madeireiros e políticos. Ainda em meados dos anos 70, líderes estudantis sobreviventes do movimento de 1968, contrários ao autoritarismo e à repressão do governo mexicano, começaram a chegar a Chiapas para auxiliar na organização das comunidades indígenas, elaborando programas de lutas por terras, escolas e hospitais. Desenvolveram um sistema de "assembléias itinerantes", que permitiu a maior integração entre as comunidades, diminuindo a distância provocada pelas barreiras lingüísticas e religiosas.

Em 1971, por decreto presidencial, as terras foram entregues à etnia dos lacandones, sob o pretexto de preservar o território ainda fértil e proteger esta etnia, que estava em vias de extinção. Por trás da ação governamental, havia, na verdade, negociações com madeireiros. As comunidades organizadas dos tzotziles, tzeltales, choles, tojolobales e zoques não aceitaram o desalojamento e a proposta de assentamento em terras inférteis. Enfrentaram o governo, se recusando a entregar sua autonomia e a Selva Lacandona aos madeireiros em troca de pequenas concessões. Os conflitos agrários com o Estado se acentuaram. Em princípios dos anos 80, 400 latifúndios foram invadidos. A maior parte dos sobreviventes, foi expulsa pelo governo. 70 mil indígenas solicitaram a permanências nas terras ao Departamento Agrário. Não foram atendidos.

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