Thursday, June 15, 2006

O SANTO REBELDE



A Monalisa tentou me hipnotizar. Aquela mulher-homem de olhar penetrante me arrastou para dentro de uma livraria (antigo refúgio para a minha alma cansada dos ensurdecedores ruídos urbanos), ultrapassou a barreira do meu consciente, e me fez folhear o Código que, segundo dizem os amigos, os jornais, e, agora, o cinema, me revelaria segredos jamais imaginados sobre a Igreja onde professo minha fé.

Não gostei das poucas palavras que li. Provavelmente porque já não estava predisposta a gostar. Lembrei-me de como ruborizei logo nas primeiras páginas do “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do Saramago. Logo o Saramago, autor do “Ensaio sobre a Cegueira”, um dos três livros que quero levar comigo no caixão. Só consegui levar adiante a leitura graças a uma cartela de antiácido e ao talento que o escritor tem ao tecer palavras.

Mas a trama policial que tinha em mãos naquele momento em nada me seduzia: inexistia vínculo emocional com o autor, as palavras me pareciam cortadas e coladas ao acaso, e como agravante os olhos vorazes da capa insistiam na tentativa de hipnose. Larguei-o antes que fosse tarde, e fugi, atônita. Mas o olhar de Monalisa me perseguia: ele estava nos outdoors, nas bancas de jornais, nos letreiros dos grandes cinemas. Em meio à perseguição, senti pena dela: inerte, onipresente, solitária...Só então percebi que haviam globalizado a Monalisa.

Sentei-me por um instante, apreciando o outdoor como se estivesse no Louvre. Compadecida da pasteurização da obra de Da Vinci, me entreguei ao acaso, largada em um banco da orla da Zona Sul carioca. Não se passou muito tempo até que meu subconsciente, assustado com o estado de inércia ao qual meu espírito se entregara, me salvasse da angústia que ameaçava transbordar: lembrei-me de ter lido, em algum rodapé de jornal, a notícia de lançamento de um documentário sobre a vida de Dom Hélder Câmara. Batizado de “Santo Rebelde”, ainda que o filme não passasse de uma reprodução de pré-conceitos e críticas à Igreja Católica, só o fato de cometer a heresia de esnobar a Monalisa globalizada justificaria o ingresso.

Compartilhei a sala de cinema com mais seis hereges. Quatro deles de duas gerações à frente da minha. Ajeitei-me espaçosamente no banco, e esperei, com o escudo católico em mãos, pelos tapas de Erika Bauer, diretora do longa. Seguramente viriam críticas sobre a intervenção promíscua da Igreja Católica na política, sobre os instrumentos de coerção da instituição para controlar as massas, sobre as incoerências e os dogmas “absurdos” pregados por sacerdotes de caráter pouco admirável.

Fui surpreendida pelo vaivém da batina, levantando a poeira das periferias. Sandálias franciscanas que se arrastavam no chão esburacado, ao som de tambores africanos. A lama contaminada, pintando de marrom os pés do religioso, que saltava valas negras enquanto uma multidão de crianças se divertia, seguindo os passos do homem que rezava a missa “onde nenhum padre vai”. Ri, chorando, quando em incontido desabafo o religioso desabou: “Quando venho para essas áreas esquecidas e o povo miserável reza ‘o Senhor é meu pastor, nada me faltará`, me dói o coração. Olho ao redor e vejo que falta tudo, meu Deus!”.

A câmera de Bauer consegue captar com maestria a angústia do homem que ousou criticar o Capitalismo em tempos de Guerra Fria. Com sábia ironia, atordoava os jornalistas: “Se eu dou comida aos pobres, vocês me chamam de santo. Se eu pergunto porque os pobres não têm comida, vocês me chamam de comunista".

Cearense, de riso largo e olhar acolhedor, foi ordenado sacerdote aos 22 anos. Segundo conta com saudade exacerbada, seu pai, homem pouco afeiçoado às práticas religiosas, foi quem lhe estimulou a seguir a vocação “Meu filho, saiba que padre e egoísmo não combinam. Padre tem que se gastar”. No Rio de Janeiro, eleito bispo em 1952, descobriu que “vã é a fé sem ação”, e atreveu-se a renunciar ao egoísmo, semeando idéias “subversivas” no seio da Igreja Católica. “A Igreja não tem que ser assistencialista. Temos que pressionar os poderosos para que abram espaço para que os humildes se superem”.

Em 1956, fundou a Cruzada São Sebastião, canal de atendimento direto aos moradores das comunidades carentes cariocas. Três anos mais tarde, criou o Banco da Providência, para atender aos miseráveis. Enquanto as máquinas de Coca-Cola invadiam o território nacional, e o Tio Sam traçava um projeto desenvolvimentista para a América Latina, Hélder aventurava-se na loucura de lutar pela igualdade social. “Meus queridos, a única guerra legítima é aquela que se declara contra o subdesenvolvimento e a miséria".

Em 1964, a ditadura tentou fazê-lo calar-se, exilando-o em Olinda, onde foi eleito Arcebispo. Foi proibido de proclamar o Deus protetor dos oprimidos. Os militares assassinaram seus seguidores, que anunciavam nas periferias que todo pobre é vítima involuntária de relações injustas. “Se a fé é capaz de remover montanhas, não há de ser mais difícil revolver estruturas”. O nome do religioso que queria desestruturar a ordem foi impedido de ser impresso nos jornais, falado nas rádios e telejornais. Com um quê de vaidade, vangloriava-se da censura que o poder lhe impusera. Foi ao exterior proclamar que no Brasil as liberdades estavam ameaçadas, que o país estava sendo entregue em mãos norte-americanas, e que a miséria atingia índices alarmantes.

Foi ouvido, mas poucos o seguiram. Seu discurso rebelde não cabia nos limites do espaço ideológico estipulado pelos mais abastados e pelos doutores da Igreja, que se arrepiavam quando Hélder proclamava que “A vivência da fé cristã na América Latina supõe um posicionamento político em favor dos oprimidos”. Morreu antes de ver realizado seu sonho de exterminar a fome, e poder rezar o Pai Nosso sem sentir a consciência pesar. Mas deixou sementes de subversão no cerne do Vaticano. Desestruturou as bases, abrindo espaço para a prática de uma teologia calcada em aspirações libertadoras dos pobres, no exercício pleno do amor, pregando a alcançável utopia da igualdade.

Hélder me hipnotizou. Levou-me a um estado de transe, que mesclava a satisfação de ter reencontrado a razão de ser do Cristianismo e a euforia por constatar que a esperança me aguardava na porta do cinema.



NÃO SEI O QUE DIZER

Se eu pudesse
sairia derramando dinheiro
silenciosamente
nos bolsos dos pobres
caídos de cansaço e de fome
em bancos de jardins abandonados.
Se eu pudesse
sairia povoando de sono e de sonhos
as noites indormidas dos desesperados.
Se eu pudesse
- ah! se eu pudesse-
afugentaria da terra a desconfiança
que embacia os olhares mais claros
e torna turvos os horizontes mais limpos...
Não sei o que digo, Senhor!
Se deixas na terra
a pobreza, a insônia e a desconfiança
é porque elas traduzem uma mensagem
cifrada para os homens
e não entram por acaso
na vida de ninguém.

Dom Hélder Câmara.

Rio de Janeiro, 25/4/48.

3 Comments:

At 9:30 PM, Blogger A digestora metanóica said...

Lu, obrigada belo texto iluminado no meu fim de Corpus Christ. O Alexandre havia me recomendado o filme. Lembrei dele lastimando o fato de ter apenas cinco outros hereges na sala de cinema para compartilhar a experiência de ter a vida do santo rebelde como inspiração para nossa existência vagabunda e pobre de rebeldias.
Sinto cada vez mais orgulho de vc, do seu talento e da sua coragem. Força, minha linda. E que a paz de Cristo nos torne inconsoláveis com a injustiça.
Te amo!
Gi

 
At 12:06 AM, Blogger A digestora metanóica said...

ai, acabei não conseguindo deixar pra depois e terminei o texto. hihihihi
valeu pelo incentivo da madrugada.
ah, tive que falar em ombros. homenagem a vc.
beijos!

 
At 3:36 AM, Anonymous Anonymous said...

ler todo o blog, muito bom

 

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