Thursday, June 15, 2006

CHIAPAS: CELEBRAÇÃO DA IGUALDADE - PARTE 3


Zinacatán

Caminhando sob o calor de 40 graus, saio de San Juan Chamula rumo à Zinacatán, ignorando as advertências dos guias locais que me avisam que a comunidade para a qual me dirijo é pouco receptiva. Barrancos e abismos se alternam ao longo do caminho. Imagino como deve ser difícil a locomoção em caso de chuva. Sinto sede, mas recuso-me a beber o único líquido não-alcoólico à venda no armazém local: Coca-cola. Junto-me a um grupo de jovens universitários mexicanos, que ali estavam, de passagem, para, segundo eles, aproveitar o momento de trégua e chegar mais perto dos “verdadeiros mexicanos”. Falam da formação de uma nova consciência política, com povos indígenas chegando ao poder, como quase aconteceu em 1994, com o apoio do Exército Zapatista de Liberação Nacional. Perguntam sobre como a elite brasileira está aceitando um governo comunista e me questionam sobre o destino do Movimento dos Sem-Terra. Mas antes que termine a primeira sentença, encobrem minha fala relembrando, com orgulho, a “Marcha dos 500 Anos de Resistência Indígena Popular”, realizada em 1992. Andrés, o mais silencioso deles, me surpreende: “Olhe para a serra: lá estão eles, os revolucionários. Agora olhe para mim: aqui está um revolucionário. Quando nascerem os meus filhos, antes mesmo de aprenderem a se comunicar, já serão revolucionários”. No caminho repenso sobre a sensível observação de Andrés, embora não me convença de que ele ou eu, por mais que ostentássemos raízes indígenas, fossemos revolucionários. Eles, os habitantes daquela terra, estavam sendo obrigados a lutar por serem incapazes de se adaptar ao sistema de propriedade privada. Nós, ao contrário, nos acomodamos.

O povoado de Zinacatán resplandece sobre os meus olhos, e antes mesmo de me aproximar da entrada do povoado, somos surpreendidos por dois homens, com facões nas mãos e pés descalços, que nos advertem, por meio de gestos, que a entrada não é permitida. Enquanto meus companheiros de viagem tentam, inutilmente, convencê-los de que não representamos nenhum perigo, aproveito para observar duas crianças que correm atrás de uma borboleta amarela. Recordo-me da imagem da borboleta, que, apesar da fragilidade aparente, é capaz de desatar uma tormenta. Uma voz, carregada de um sotaque espanhol bem peculiar, me lança de volta à realidade. Um mestiço vinha em nosso socorro: em troca de 25 pesos, o Indiana Jones da serra Lacandona, negociou a nossa entrada por 30 minutos, contados a partir do segundo que cruzássemos a cerca humana. Caso extrapolássemos o tempo, ele, o mestiço, e os vigias iriam nos buscar com facão em punho, sem se responsabilizarem pelos danos ocasionados (fizeram questão de frisar).

Radiantes, descemos morro abaixo como crianças em direção ao lago em dia de sol. Ao final do caminho de barro, descobrimos uma movimentada feira local. Nenhum dos moradores parecia estar surpreendido com a nossa presença. Não se aproximavam, nem nos ofereciam suas frutas ou leguminosas. Tentava disfarçar meu olhar de estrangeiro, mas a minha ânsia de tudo ver em poucos minutos me denunciava. Tentei comprar um zapote, uma fruta com aparência de pinha, só que com a baga preta e doce, mas meus metais foram recusados. Ali, fruta é trocada por farinha de milho ou qualquer outra riqueza que brote da terra.

Ao redor da feira, uma escola, um templo e algo que me pareceu um posto de saúde. Provavelmente se tratavam dos “caracoles”, os postos de atendimento à população criados pelo EZLN. Tentei me aproximar, mas a sensação de vigilância constante me intimidou. Pela primeira vez, desde que chegara em Chiapas, me sentia branca. Resolvi recuar, justo quando os trinta minutos que nos foram permitidos se esgotaram. Regressamos à San Cristóbal de Las Casas, com planos de na manhã seguinte partir em direção à Ocosingo, uma das comunidades marcadas pelo sangue dos guerrilheiros em 1994.

Ocosingo e San Miguel

De dentro da caminhonete a estrada parecia ainda mais estreita. Fechei os olhos para não enfrentar o abismo. Abri-os apenas quando o carro, enfim, parou. O motorista saltou e com ares de impaciência indisfarçável tentou negociar a nossa entrada em Ocosingo, com um grupo de índios estrategicamente posicionados na entrada do povoado. Os vigias balançaram a cabeça, em gesto negativo. Despeço-me em silêncio da comunidade, antes mesmo de conhecê-la. Meus companheiros de viagem resmungam, maldizendo a falta de sorte, e começam a especular o motivo pelo qual nossa entrada foi recusada. Segundo afirmam, os tzeltales não costumam destinar esse tratamento aos visitantes em tempos de paz.

Enquanto a caminhonete avança, em primeira marcha, pela estrada, observo as mulheres, que caminham, oscilantes, com redes e cinturões multicoloridos nas costas, e as crianças sobrecarregadas pelo peso de seus irmãos. Nosso destino é San Miguel, conhecida como a entrada da “selva dos zapatistas”. Meus companheiros de viagem estão inquietos e incrédulos. Como já haviam nos alarmado os mais pessimistas, ao chegar em nosso destino, somos impedidos de sair da caminhonete. Recuamos, consolados apenas pela bela paisagem. No caminho de volta, fui convencida de que algo estava prestes a acontecer no coração da Selva Lacandona.

A Nova Revolução

Seis meses após ter deixado aquelas terras, e quatro anos depois do governo mexicano ter negado o reconhecimento dos direitos e das culturas indígenas pactuados nos acordos de San Andrés, os membros das comunidades indígenas de Chiapas celebrariam, na noite do dia 15 de julho de 2005, uma nova etapa da luta iniciada em 1 de janeiro de 1994.

O alerta vermelho soou de 19 a 27 de julho na Serra Lacandona. Os zapatistas liderados por Marcos anunciaram na Sexta Declaração da Serra Lacandona que “durante quatro anos os zapatistas prepararam o terreno para apresentar ao seu povo portas e janelas para que, chegado o momento, todos pudessem escolher qual janela atravessariam e qual porta abririam”.

Surpreendentemente, anunciaram ainda a ampliação de seus objetivos: “Seguir luchando por los pueblos indios, pero ya no sólo por ellos ni sólo con ellos, sino por todos los explotados y desposeídos, con todos ellos y en todo el país” (“seguir lutando pelos povos indígenas, mas não por eles e nem só com eles, mas também por todos os explorados e todos aqueles que não tem posse, com todos eles e em todo o país”). Dentre os países incluídos no plano mundial zapatista está o Brasil, com quem Marcos pretende estabelecer “relações de respeito e apoios mútuos”. Cuba, Chile, Venezuela, Argentina, Uruguai, Equador e Bolívia também são citados na Declaração, que aborda ainda o estabelecimento de alianças e realização de encontros intercontinentais com a Europa, África, Ásia e Oceania.

Segundo documentos divulgados pelos revolucionários, a estrutura interna do EZLN está agora subdivida em três partes. A primeira delas é o “Comité Clandestino Revolucionario Indígena”, voltado à defesa e orientação dos povos zapatistas. A segunda subdivisão intitula-se “Comisión Intergaláctica del EZLN”, criada para atender aos objetivos internacionais estabelecidos pela Sexta Declaração da Selva Lacandona. E, finalmente, a “Comisión Sexta del EZLN” encarregada de atender as ações de ordem nacional.

Buscam eles - tzeltales, tzotziles, choles e tojolabales - uma nova forma de fazer política e uma nova Constituição. O sonho, pretensioso, é um sopro de esperança, propagado por vozes “teimosamente vivas que nos anunciam outro mundo que não seja este, envenenador da água, do solo, do ar e da alma. Também nos anunciam outro mundo possível as vozes antigas que nos falam da comunidade. A comunidade, o modo comunitário de produção de vida, é a mais remota tradição das Américas, a mais americana de todas: pertence aos primeiros tempos e às primeiras pessoas, mas pertence também aos tempos que vêm e pressentem um Mundo Novo” .



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