Saturday, October 28, 2006

Diário de Transbordo - Parte XIV: Mitos e Lendas - La Llorona


Na noite de 19 de outubro, Dolores não encontrou consolo na caneca de vinho caseiro da adega cubana. Sentia-se sufocada de experiências, angustiada pelo porvir e amedrontada ante a necessidade de abandonar seres cativados. Alcançou a rua balançando o vento com a saia rodada, marcando o caminho do centro da capital mexicana com a água e o sal que brotavam de seus olhos.

Ouviu passos atrás de si, mas preferiu ignorar a presença inoportuna na madrugada solitária. Caminhou a passos largos, mas quanto mais se apressava, mais sentia a presença inquietante da mulher que a seguia. O estalar do salto no asfalto corroído pelo peso dos automóveis lhe dava a certeza de que era uma alma feminina que a perseguia. A respiração dócil, embora apressada, não lhe deixava dúvidas.

Virou bruscamente na primeira rua à esquerda, e escondeu-se atrás de dois latões de lixo povoados de ratazanas. Esperou até ter a certeza de que a companhia indesejada havia se esvaído, e entregou-se novamente à solidão noturna da capital.

Encontrou, aliviada, o Anjo da Independência, e deixou-se cair nos degraus construídos a seus pés. Quando novas gotas de água e sal tocaram a escada, ouviu soluços, mais angustiados que os dela, a seu lado. Surpresa, tentou mirar nos olhos da mulher, que se cobria com um longo vestido branco, mas um véu de uma neblina espessa encobria seu rosto.

Ao seu redor, uma nuvem cinza carregada exalava um vento frio, que soprava uniforme e intenso, como se fosse manipulado por uma força superior. O pranto da mulher era tão voraz, que fazia temblar os degraus do monumento, e Dolores precisou fazer um esforço sobre-humano para não ser levada pela correnteza das lágrimas da fantasmagórica criatura.

Impossibilitada de consolar ou de ser consolada, Dolores uniu-se à Chorona em seu pranto incontido, e naquela noite chorou por todos os amores perdidos, por todas as alegrias compartilhadas, por todas as experiências mal-vividas, por todos os sonhos conquistados e pelas frustrações que hão de vir. E deixou-se desaparecer, no rio de sal e água, nos braços da figura mitológica mexicana.

Cidade do México, 20 de outubro de 2006.


A Lenda:

No século XVI, os moradores da antiga Tenochtitlan trancavam todas as noites suas portas e janelas para não deixar entrar em casa o pranto de uma mulher. Aqueles que procuraram averiguar a causa do pranto declararam que a claridade lhes permitia ver apenas uma espessa neblina rente ao solo e uma mulher, vestida de branco e com um véu. A mulher percorria a cidade chorando, e sempre se detinha na Plaza Mayor, onde ajoelhava-se voltada para o oriente e, em seguida, levantava-se para continuar sua ronda. Ao chegar às margens do lago Texcoco, desaparecia. Poucos homens se arriscaram a aproximar-se do espectro fantasmagórico - aqueles que o fizeram sofreram com espantosas revelações ou morreram.

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