Wednesday, July 19, 2006

AQUÁRIO

Fora de seu habitat, ele era outro. À primeira vista, um sujeito cosmopolita qualquer, desapegado de qualquer identidade que pudesse posicioná-lo na arena onde convivem os seres sociais. Poderia ser um professor de literatura, com seus óculos de intelectual, cabelo escasso e a expressão caricata de seriedade. Ou quem sabe um respeitável esposo, pai amoroso de três belas meninas e funcionário público exemplar. Enquanto ele caminhava em direção à parada de ônibus fingindo não vê-la, ela se esforçava em reconhecer o homem de seus desejos naquele sujeito que deslizava trêmulo à margem do asfalto.

Aproximou-se dela, deu-lhe um beijo insosso no centro exato da bochecha direita, e tomou a distância de três largos passos. Não poderiam ser vistos juntos. O que pensariam deles? De que forma julgariam a conduta destes dois pervertidos, que se dedicavam com tanto afinco à exploração mútua de seus corpos? Ele era mestre na arte de construir muros. Fechava-se num círculo de autocontrole, que nada, nem mesmo a tempestividade do comportamento dela, era capaz de provocar nenhuma mísera rachadura. Irritou-se por não perceber nele a menor expressão de desejo. Onde estaria aquele homem provocante, ousado, intenso, a quem entregara seu corpo e sua poesia? Pensou em propor uma mudança de planos. Melhor seria desistir do teatro, e desfrutar a noite no habitat dele, onde não havia muros, círculos, nem quaisquer outros grilhões que lhe imobilizassem os sentidos.

Porém, antes de propor a reviravolta dos planos, o esperado transporte chegou. Duas vagas separadas. Cinco bancos e a inconveniente presença de outros sujeitos os mantiveram separados por quase uma hora. No trajeto, se perguntou se era o habitat que conferia encanto ao animal. Lembrou-se de que quando completou cinco anos, ganhou da mãe um peixinho incolor, desses que se compra por centavos na feira. Nada naquele peixinho sem vida, ordinário, incapaz de demonstrar afeto, lhe despertava interesse. Por isso, deixou-o conscientemente esquecido no tanque, entregue à própria sorte, sem se dar ao trabalho sequer de tirá-lo do saco plástico. A mãe, percebendo o desprezo que a filha conferira ao presente, comprou um aquário bem grande, bonito, decorou-o com castelinhos, luzes e pedrinhas coloridas, e colocou-o em posição de destaque na sala de estar. Quando voltou da escola, encontrou seu peixinho ordinário nadando soberano entre castelos e luzes, no melhor lugar da casa. Permaneceu por horas com o nariz grudado no vidro do aquário, bestificada com as piruetas e com a majestade de seu peixinho incolor.

Ao chegarem ao destino final, se entreolharam sem paixão. Ele caminhava a passos largos, indiferente aos pequenos pés da menina, incapazes de acompanhá-lo. Compraram os ingressos. Ela deu voltas impacientes ao redor das pilastras, onde caricaturas sem expressão estavam expostas. Ele, ao contrário, passeava com absoluta tranqüilidade, indiferente a ela, admirando os desenhos com a propriedade de quem está habituado a ler os pormenores da mente do artista. Tentou tocar-lhe o braço, mas a redoma que ele construíra parecia irremediavelmente sólida.

Devia adotar alguma atitude extrema para balançar os alicerces dele. Não esperava demonstrações públicas de afeto, mas por que lhe negava um mísero olhar de desejo, enquanto ela trepidava embaixo do vestido florido? Os atores anunciaram o início do espetáculo, decretando uma pausa em sua angústia. Pensou em atirar-se sobre ele, já que estariam protegidos pela escuridão do teatro. Mas o universo estava, definitivamente, conspirando contra ela naquela noite: por imposição dos roteiristas, homens e mulheres deveriam assistir separados à encenação, cujo tema principal era justamente o membro sexual masculino.

Enquanto os atores se esforçavam para arrancar gargalhadas do público, ela se perdia no olhar dele, estrategicamente posicionado à frente dela. “Como era irritantemente sedutor, como seu peixinho incolor depois de descobrir que era dono do aquário”. Comparada à história deles, o roteiro da peça não passava de um livro pré-escolar: repleto de imagens, vazio de sentidos. Como deixar-se seduzir por uma narrativa tão rasa, quando a profundidade que buscava se apresentava ali, a alguns passos, impassível, diante dela?

A angústia pelo toque aumentava a cada ato. Queria tocá-lo todo, passear as mãos pelo peito de animal peludo, pela cabeça quase lisa, pelos braços confortantes de homem protetor. Seria a personagem que ele ordenasse: a puta, a puritana, a desconhecida, a velha amiga. E deixar-se-ia dirigir por ele, até desmaiar de exaustão no ato final.

Os aplausos a reconduziram de volta à realidade. Estava suada, mãos trêmulas, aflita com o desejo incontido. Ele convidou-a para jantar, mas a ânsia de ser invadida pelo homem de seus desejos, fez-lhe recusar o convite e implorar que fossem logo para o aquário. Dispensara afagos, canções, e todos os rituais que ele praticava. Queria única e exclusivamente reencontrar o animal dono de seu habitat, que alimentava suas fantasias, que derrubava muros e repudiava redomas. O homem que preenchia seu espaço de identidade brutalmente poética, que lhe fazia rir e lhe concedia o direito da liberdade.

Quando chegaram às portas do aquário, um oceano de possibilidades se abria diante dela: na arena daquele lar, vivia livremente suas fantasias, trocava de identidade, de idade, de contexto social. Eram outras as que falavam nela, e de tanto se perder em suas vozes interiores, se reencontrava sempre mais una ao final do embate.

Livrou-se do vestido florido e das sandálias antes mesmo dele desabotoar a calça. Quando alcançou o quarto, encontrou-o admirando, diante do espelho, sua masculinidade, no closet. Jogou-se no chão, e rastejou até ele...

Esticou toda a sua coluna de víbora, entregou-lhe as costas, e com as mãos espalmadas no espelho, implorou pela posse. Camisas, calças, cintos e sapatos os invejavam. Essas testemunhas inanimadas os rodeavam no pequeno espaço do closet, culpando-os pela invasão. Eram donos do tempo e do espaço, e responderam com gemidos aos reclames dos objetos na estante.

Fez-lhe um último afago, com ternura. Perdeu-se mais uma vez na observação de seu peixinho, que aprendera a cativá-la, exibindo-se como se tubarão fosse.

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