Thursday, July 13, 2006

A MÍSTICA DA INFÂNCIA


TINHA SETE ANOS quando demonstrou o primeiro sinal de interesse pela história dele. Quando a professora trouxe para a sala de aula o boneco alvo, loiríssimo, de olhos azuis, a vontade dela foi de arrancá-lo das mãos da mestra e sair correndo para niná-lo. Mas o temor pela punição e a lembrança de que em casa havia um parecido com aquele, a detiveram.

Ao voltar da escola, pediu a mãe que resgatasse o boneco que só aparecia no final de dezembro, quando depois de onze meses trancafiado no fundo do guarda-roupa de seus pais, ocupava lugar de destaque na mesa da sala. Quando indagada do por que do inusitado pedido, a menina respondeu com insolência: “Quero niná-lo”. Com um ar de misteriosa comoção, a mãe libertou-o da caixa, desembrulhou os papéis que o envolviam, e o entregou à criança, como se ela fosse a ama-de-leite que vinha em seu auxílio.

Na escola, todo dia ouvia um trecho novo da história do seu novo brinquedo. As capas dos livros anunciavam um mundo de paisagens paradisíacas, com colinas verdes, muitos pássaros, flores, frutos e homens sorridentes a caminhar ao lado do menino de olhos azuis. Queria estar com ele também, comendo aquelas frutas vermelhas, pastoreando ovelhinhas e construindo barquinhos de madeira.

Um dia o levou para a escola, para que também pudesse ouvir as histórias que contavam sobre ele, e correr com ela por aquelas colinas verdes, brincando com pássaros e se lambuzando com maçãs caramelizadas. Deixou-o, como de costume, com o rosto recostado sobre seu seio, para protegê-lo. Mas antes mesmo de abrir o livro, a professora arrancou-o de suas mãos e arrastou ambos para a capelinha da escola, onde foram obrigados a rezar dez Pais-nosso e trinta Ave-Marias.

Cumpriu a penitência em voz alta, sem entender a razão que movera a professora. Quando foi enfim liberta, reclamou a devolução de seu brinquedo, mas a mestra a repreendeu severamente, e a abandonou choramingando, sozinha, no genuflexório. Voltou sem seu menino de olhos azuis para casa, e preferiu ocultar o fato da mãe, com medo de receber nova punição.

Antes de dormir, pensou em contar-lhe seu dia, como adotara por hábito desde que a mãe lhe presenteara. Achou que lá da sala da diretora ele ia gostar de ouvi-la. “Coitado, devia estar se sentindo tão sozinho”. Fechou os olhos e começou a falar sobre o beliscão que a irmã lhe dera no início da manhã, sobre o pai que andava esquisito, mais nervoso que de costume; o cachorrinho que a amiga da escola ganhara da tia...“Quem sabe mamãe não me dá um também no Natal?”.

Todos os dias, ao se deitar, repetia aquela conversa, que durava o tempo suficiente para que ela perdesse a noção da hora. Na escola, a cada dia lhe contavam novas histórias do menino de olhos azuis, que, num virar de páginas, se transformou num príncipe de cabelos longos cor de chocolate. Antes da aula começar, iam todos para a capela, ler uma cartilha com frases que ela não entendia. Para não ser repreendida, mexia os lábios, enquanto sua imaginação andava pelas colinas, pulando alegre ao lado daquele príncipe, diante do qual as professoras a obrigavam a se ajoelhar.

Preferia mil vezes pular corda, andar de patins ou jogar bola com seu amigo de cabelos cor de chocolate, a ficar ajoelhada numa sala escura, lendo palavras que não compreendia e ouvindo músicas que lhe davam sono.

TINHA DEZESSETE ANOS quando descobriu que seu amigo de infância não era como o boneco que a professora lhe furtara, nem vivia saltando sobre colinas verdejantes. Numa dessas noites, enquanto dialogava com ele, viu, pela primeira vez, sua imagem verdadeira refletida na palma de sua mão: ele era negro, índio, mulato, branco; meio ocidental, meio oriental; com cabelos crespos, quase lisos; e com uma ternura que jamais esqueceria. Pediu que a levasse até as colinas de sua infância, para comer maçãs. Precisava desse alento para ajudá-la a entrar na fase adulta, pois a alegria da meninice já lhe era escassa. Mas ele a ignorou. Adormeceu, um pouco decepcionada, mas sem perder as esperanças.

No dia seguinte, sobre a mesa do café, estampado na primeira página do jornal, o viu novamente. A manchete anunciava o início da guerra de independência de Kosovo. Ele estava lá, quase imperceptível, em segundo plano, com as mãos sobre um soldado morto em combate. Alegrou-se ao constatar que ele acabara de lhe revelar o caminho para chegar às colinas que tanto desejava.

TINHA VINTE E TRÊS ANOS quando começou a caminhar.

1 Comments:

At 4:42 PM, Blogger A digestora metanóica said...

Lu, adiei essa leitura por uns dias, apesar de ter visto o texto no dia mesmo que vc postou. Agora, estou me perguntando por que não me permiti antes me emocionar com esse texto belíssimo.
Deu vontade de passear com você e o amigo de cabelos cor de chocolate por essas paisangens bonitas. Acho que farei isso agora... desde já, vamos dar as mãos.
Obrigada por mais essa salpicada de beleza, poesia e mística. O universo também agradece. O príncipe nem se fala...

 

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