Wednesday, July 05, 2006


Minha doce e ingênua Luciana,

Quando cheguei em casa ontem, estavas perdida em tuas leituras noturnas e mal me miraste. Não sei o que te leva a desperdiçar tanto tempo lendo rococós para a alma. Enquanto eu tentava despertar tua atenção, exibindo meu corpo devastado pelo sexo, tu penetravas nas páginas, e só se empolgou quando descobriu uma frase do Agostinho: “O casamento é um estado consentido de pecado!”. “Que se dane o casamento!”, retruquei na tentativa de despertar em ti qualquer estado de mobilidade que pudesse incentivar um diálogo. Mas nem sequer te destes ao trabalho de discordar de mim, um de seus principais prazeres.

Queria lhe contar que mais uma vez estive com ele, mas que dessa vez ficou uma sensação de vírgula, que me deixou atônita. Por isso voltei mais engasgada que nunca, ansiando pelos teus ouvidos. Não quisestes me desafogar, e por isso, para não sufocar de palavras, escrevo essas linhas tortas que serão coladas na porta da geladeira, para que as deguste na hora do teu desjejum.

Voltava da dança, com o corpo exausto e suado, quando o celular vibrou insistente. O ineditismo do chamado (a àquela hora, sem qualquer aviso prévio) foi suficiente para me fazer umedecer e levitar até o apartamento dele, em fração de segundos. Encontrei a porta entreaberta, as luzes apagadas, e ele, prostrado nu sobre o sofá, preparado para o sexo.

Afoguei-me de boca no membro ereto, como sinal de boas-vindas. Naquela hora imaginei como você se envergonharia deste ato de total submissão. Mas te digo, metade apartada, que dentre todos os gestos de submissão, este foi, sem dúvida, o mais intenso. Devias experimentar vez em quando esses surtos de humilhação sexual, que tanto contribuem para aumentar o poder de dominação dos machos que, quando saciados, se desdobram em línguas e suores para conceder-lhe o gozo.

Possuiu-me no sofá, de pé, e gozou intensamente. Até então, éramos macho e fêmea no cio, potros selvagens cavalgando entre quatro paredes. O banho quente, após o orgasmo, devolveu-nos a humanidade. E foi aí, minha cara, no exato momento em que nos redescobrimos homem e mulher, que começaram as vírgulas. Desse momento em diante, nosso combate carnal-poético converteu-se de tal forma em uma sucessão de reticências, que me faltam sentidos para expressar com a propriedade que a vivência mereceu.

Ele, já saciado de prazer, me olhou com olhos de...

E eu, ansiando por ser envolta naqueles braços, deixei-me penetrar no universo dele para...

Com aquele corpo pesando sobre o meu, lembrei-me de que preciso...

E ele, se divertindo com meu prazer, me desejou ter mais...

Nossos corpos, embalados ao som de Yolanda, me remeteram a...

O telefone alardeou o fim da fantasia. Voltei para casa, para os teus ouvidos, com pesar, tão desejosa que estava de ouvir a Ópera do Malandro, e tão cheia de vírgulas e reticências que precisei de três taças de vinho para aliviar-me. E tu, sua insensível, com o teu Agostinho, esnobando a minha presença.

Que o seu dia seja pleno de experimentações.

Daquela que te pertence,

Dolores.

2 Comments:

At 11:34 AM, Blogger A digestora metanóica said...

O embate com Luluzinha desperta uma Dolores mais rica, múltipla e contraditória. Quando Dolores simplesmente narra suas aventuras é sempre cheia de uma certeza que se torna vacilante no encontro com Luluzinha.
Queria saber como se daria o inverso, que questões que Lulu tem como certas se esfacelariam diantes dos argumentos de Dolores.

 
At 8:54 AM, Blogger Mauro Sérgio Farias said...

Existem traços de nossa personalidade que só vêm à tona diante daquele que representa nosso extremo oposto.

É no debate com quem pensa diferente que fortalecemos nossas convicções. Nossa fé se fortalece cada vez que a questionamos.

Doutor Jekill precisa de Mr. Hyde para poder ser, cada vez mais Doutor Jekil.

Com fraternura,
Mestre Candeia

 

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