Monday, July 03, 2006

Ah Dolores...


Ah, Dolores...nem tudo são cores. Quando seu último amor se foi, sentiu-se pesada. Esperava pelas vacuidades que sempre chegam quando as almas, que um dia estiveram fundidas, se dissipam. Mas em seus ovários pesavam palavras que não foram ditas, os sonhos intangíveis, as obsessões cotidianas, o fardo desafiador da rotina. Aos vinte e cinco anos se é jovem para quase tudo. Porém, até para quem só viveu pouco mais de duas décadas, faltam forças para carregar memórias que permaneceram paradas no tempo, a espera de alguém que as recolhessem para serem vividas.

Ansiava pelo reconfortante sentimento da solidão, o maior indicativo humano de perda. Mas os dias transcorriam, e os ovários se inflavam indicando que era preciso esvaziar o corpo para um novo ciclo. Deixara tudo para trás, pois desistira de mirar-se no exemplo das mulheres de Atenas. Era muito jovem ainda para que lhe arrancassem qualquer coisa além de carícias plenas, obscenas. Tremia só em pensar na possibilidade de ver cativa sua liberdade - dom que ironicamente agora lhe era sobrecarga. Não sabia que destinação dar a seu corpo, justamente quando a juventude começava a apontar sinais de maturidade. No fundo, sentia a necessidade de sentir a raiz firme das coisas. Mas seu corpo não cabia no espaço monótono dos amores que inventara até então.

Quando seu último amor se foi, decidiu levar a cabo todas as fantasias de liberdade que cultivava dentro de si, e que sua moral de menina casta haviam lhe impedido de viver. Como a águia criada como galinha que pelas mãos de um desconhecido bom samaritano volta a perceber-se águia, tremia ante a presença da liberdade.

Já levava meses carregando o fardo em seus ovários, quando ele surgiu em sua vida. Havia caos em seus olhos e ordem em seus sentidos. Logo na primeira noite percebeu que a junção entre aquelas duas almas caóticas era profundamente generativa, ainda que ambos desconhecessem o caos que movia um e outro.

O virtual não a ludibriara: era verdadeiramente um homem interessante. Tinha senso de humor, sagacidade e o dom maior da virilidade. Mas suas palavras contraditoriamente revelaram um homem temeroso de ultrapassar o plástico limite do estético. Analisando friamente as palavras dele, era exatamente como os outros: desejava unicamente o corpo estético da menina-mulher, e essa constatação lhe causava repugnância.

Mas ele soube envolvê-la, atraí-la até seus domínios e subjugá-la ao prazer carnal, e esse era um feito que merecia ser recompensado. E mesmo limitada em seu desejo, às cegas, sem saber onde nem como tateá-lo, gozou intensamente. Viajou pelo caos do desconhecido e lhe arrancara uivos de prazer.

Quando deixou a cama dele pela manhã, sentiu-se mais leve, mas ainda pesavam seus culhões internos femininos. Não deviam ter trocado tantas palavras. Seus olhos caóticos o denunciaram, por mais que as palavras se esforçassem em afirmar o contrário. Não, ele definitivamente não era como os outros: não estava interessado apenas no corpo estético da menina-mulher. Divertiu-se com a fragilidade do homem que queria fazer-se invisível, e deixou-o, disposta a perceber a infinidade de desconhecimentos que aquele primeiro encontro despertara.

Passaram-se três dias até que ele a procurasse. Trocaram palavras truncadas, bem distintas daquelas que precederam o primeiro encontro. Nenhuma delas parecia fazer sentido depois da interação caótica e revigorante entre os corpos. Ela o tinha agora atravessado na garganta. Queria revelar mais de si a aquele homem, mostrar-lhe que seu corpo estético e sua alma estavam fundidos, que intensidade para ela consistia em revelar a alma durante o ato sexual.

No primeiro combate mostrara-se tão armado, que precisou de tempo para repensar a estratégia de ataque. “Para fazer o inimigo vir de livre vontade, exibe lucros aparentes. Para impedir que o inimigo avance, mostra-lhe os danos potenciais”. Resgatou o ensinamento do livro “Arte da Guerra”, que por muito tempo hesitou em ler, tão enojada que estava das campanhas “marqueteiras” que exploraram o clássico chinês.

Naquele momento agradeceu por gozar da companhia de Sun Tzu, que, aliás, devia saber como ninguém comandar uma mulher na cama. “Seleciona vacuidades e te aproprie delas”, sussurrou o chinês em seu ouvido. Adiou por mais três dias o novo combate. Quando o tempo chegou, já havia digerido a primeira batalha e sentia-se preparada para expor suas vacuidades ao desconhecido.


Ele arrumou os talheres com cuidado. E com zelo serviu o vinho. A música também estava mais apropriada: não tinha o apelo romântico criado na primeira noite. Como podem sete notas finitas criar variações sonoras infinitas? O pensamento chegou enquanto o observava preparar a massa que seria servida no almoço. Haviam elegido o dia para o novo combate. Assim tudo ficaria, literalmente, às claras, sem espaços para as fugas verbais e emocionais que tanto odiava.

Deixou o macarrão deslizar em direção aos pratos, com tranqüilidade. Será que ele estaria à procura de um cais? Segue pacífico, navegando com assustadora segurança. Balbuciou qualquer coisa, mas ela não o ouviu. Preferiu perder-se na observação daquele homem, que estava lhe ajudando inconscientemente a esvaziar-se. O vinho ampliou seu campo perceptivo. Após o almoço, foram passear os olhos sobre terras latino-americanas, onde ela havia pisado. O chinês sussurrou novamente em seu ouvido: “exibe lucros aparentes”. Deixou sua alma de libélula transparecer nitidamente, e ele se entregou.

Seus ovários estavam despejando óvulos. Estava plena de sangue, pesada, imprópria para o ato, segundo a moral que construíra. Mas com a maturidade discursiva que só o tempo concede, converteu-a a sua própria moral, e jogou-a no chão, possuindo-a com todo o seu desejo e suas vacuidades. Sentia o suor dele embeber seu colo, o sangue brotar abundante de seus ovários e, após o gozo incontido, o sêmen percorrer a linha tênue de suas costas.

Havia paz no modo como a olhava. Paz na maneira como suas mãos percorriam o corpo estético da menina-mulher. Ele adormeceu com a cabeça recostada em seu colo. E ela percebeu que estava vazia! Profundamente vazia, com os ovários desobstruídos, preparada para o novo ciclo. O beijou fraternamente, com cuidado para não despertá-lo.

Durante o ato, ele revelara à menina-mulher suas vacuidades: não desejava só o corpo estético, mas as palavras e os sonhos que a nova companhia lhe proporcionara. Por isso deixava escapar palavras que revelavam sua doçura masculina e dormia tranqüilamente entregue ao desejo dela. Percebeu com absoluta felicidade que ele realmente não precisava de um cais: precisava de ilhas para extravasar desejos e repousar quando estivesse cansado da navegação solitária. E ela, tão plena de flores e frutos, era um belo pouso para navegantes inconstantes, que vem e vão, sem dizer quando nem como chegam. Ah, Dolores...nem tudo são dores.

1 Comments:

At 9:31 AM, Blogger A digestora metanóica said...

o corpo estético atrai os navegantes, mas logo eles percebem as delícias maiores da ilha de frutos.
gente, fica até difícil comentar às vezes...

 

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